Monsieur Chocolat


O filme revela sobretudo as cruas e complexas contradições sociais que envolveram a sua vida


1. Pensava continuar a escrever sobre os medos e como eles se exprimem hoje, insistentemente, em novelas, séries e sobretudo em noticiários e comentários de certos canais de televisão.

O seu empolamento não é uma estratégia política exclusivamente nacional. Entre nós, tal estratégia serve-se, porém, de conteúdos e protagonistas especiais.

Relativamente ausentes do país estão o medo do terrorismo, da vaga de refugiados e do nacionalismo patrioteiro.

Os medos que nos afligem são, pois, ainda outros: a UE – qual Adamastor moderno com as suas vontades e zangas imprevisíveis e incontornáveis – e a banca e os mercados, com os seus gnomos endiabrados, que ora os servem direta e escancaradamente como capatazes, ora, com aparente distância e neutralidade, comentam os seus caprichos intimidantes na televisão.

Talvez um dia – esperemos que mais cedo do que tarde – a nossa recente sede de transparência nos revele todos os laços e conivências que a nossa comunicação social e muitos dos que nela intervêm escondem.

2. Acontece que me apeteceu ir ao cinema, para desanuviar do trabalho e não ter de tombar nos tremendismos mediáticos.

Aqui, além disso, os hábitos sociais holandeses aconselham a tomada de um aperitivo no bar do cinema, que ainda funciona, mesmo na ausência do intervalo de outrora, como sala de convívio e conversa; o que, há que reconhecer, é deveras agradável.

Sempre gostei de assistir a todos os anúncios – esses, ao menos, são claros nos propósitos – e trailers dos filmes que hão de vir a ser exibidos.

Todavia, desta vez comecei, por causa dos últimos, a ter uma sensação assaz incómoda.

A maioria dos trailers divulgava tão–só filmes cujo conteúdo parecia resumir-se aos problemas existenciais de pessoas que ou descobriam estar a ser vítimas de doenças incuráveis, ou tomavam consciência tardia e culpada da sua homossexualidade ou, mais dolorosamente, conjugavam essas duas inusitadas descobertas.

O meu desconforto não resultou, obviamente, das temáticas – embora confesse que, para descontrair, o problema das doenças incuráveis não fosse o melhor –, mas do enfoque absolutamente ensimesmado com que tais assuntos eram tratados.

Temi, pois, o pior em relação ao filme que escolhera, por sugestão empolgada de um caixa da bilheteira, o qual me dissera tratar-se de um filme excecional: “Monsieur Chocolat”.

Como depois verifiquei, embora lateralmente, também este filme abordava, afinal, tais problemáticas.

A diferença, porém, é que a questão principal – o racismo –, como as demais problemáticas, não é visto apenas numa perspetiva egocêntrica e piegas.

3. O filme, baseado numa história real, não acaba bem: não há happy end.

Monsieur Chocolat morre de tuberculose, na pobreza e – pese embora a sua força de vontade – sem ter conseguido alcançar os objetivos de vida que se propusera.

Morre, enfim, confortado com o amor e a ternura dos que também se sacrificaram para lhos proporcionar.

O enredo, longe de se centrar apenas na autocontemplação das condicionantes pessoais da sua vida, revela sobretudo as sinuosas contradições sociais que a envolveram.

É a denúncia realista dessas contradições e dos laços perversos que elas tecem que permite ao espetador compreender, a um tempo, o heroísmo e a gigantesca luta pessoal do personagem e, a outro, a falsidade da fantasia liberal de que a qualquer um é possível aceder ao triunfo e à realização pessoal, apenas com esforço e determinação próprias.

Vale a pena ver “Monsieur Chocolat.”

Jurista.

Escreve à terça-feira

Monsieur Chocolat


O filme revela sobretudo as cruas e complexas contradições sociais que envolveram a sua vida


1. Pensava continuar a escrever sobre os medos e como eles se exprimem hoje, insistentemente, em novelas, séries e sobretudo em noticiários e comentários de certos canais de televisão.

O seu empolamento não é uma estratégia política exclusivamente nacional. Entre nós, tal estratégia serve-se, porém, de conteúdos e protagonistas especiais.

Relativamente ausentes do país estão o medo do terrorismo, da vaga de refugiados e do nacionalismo patrioteiro.

Os medos que nos afligem são, pois, ainda outros: a UE – qual Adamastor moderno com as suas vontades e zangas imprevisíveis e incontornáveis – e a banca e os mercados, com os seus gnomos endiabrados, que ora os servem direta e escancaradamente como capatazes, ora, com aparente distância e neutralidade, comentam os seus caprichos intimidantes na televisão.

Talvez um dia – esperemos que mais cedo do que tarde – a nossa recente sede de transparência nos revele todos os laços e conivências que a nossa comunicação social e muitos dos que nela intervêm escondem.

2. Acontece que me apeteceu ir ao cinema, para desanuviar do trabalho e não ter de tombar nos tremendismos mediáticos.

Aqui, além disso, os hábitos sociais holandeses aconselham a tomada de um aperitivo no bar do cinema, que ainda funciona, mesmo na ausência do intervalo de outrora, como sala de convívio e conversa; o que, há que reconhecer, é deveras agradável.

Sempre gostei de assistir a todos os anúncios – esses, ao menos, são claros nos propósitos – e trailers dos filmes que hão de vir a ser exibidos.

Todavia, desta vez comecei, por causa dos últimos, a ter uma sensação assaz incómoda.

A maioria dos trailers divulgava tão–só filmes cujo conteúdo parecia resumir-se aos problemas existenciais de pessoas que ou descobriam estar a ser vítimas de doenças incuráveis, ou tomavam consciência tardia e culpada da sua homossexualidade ou, mais dolorosamente, conjugavam essas duas inusitadas descobertas.

O meu desconforto não resultou, obviamente, das temáticas – embora confesse que, para descontrair, o problema das doenças incuráveis não fosse o melhor –, mas do enfoque absolutamente ensimesmado com que tais assuntos eram tratados.

Temi, pois, o pior em relação ao filme que escolhera, por sugestão empolgada de um caixa da bilheteira, o qual me dissera tratar-se de um filme excecional: “Monsieur Chocolat”.

Como depois verifiquei, embora lateralmente, também este filme abordava, afinal, tais problemáticas.

A diferença, porém, é que a questão principal – o racismo –, como as demais problemáticas, não é visto apenas numa perspetiva egocêntrica e piegas.

3. O filme, baseado numa história real, não acaba bem: não há happy end.

Monsieur Chocolat morre de tuberculose, na pobreza e – pese embora a sua força de vontade – sem ter conseguido alcançar os objetivos de vida que se propusera.

Morre, enfim, confortado com o amor e a ternura dos que também se sacrificaram para lhos proporcionar.

O enredo, longe de se centrar apenas na autocontemplação das condicionantes pessoais da sua vida, revela sobretudo as sinuosas contradições sociais que a envolveram.

É a denúncia realista dessas contradições e dos laços perversos que elas tecem que permite ao espetador compreender, a um tempo, o heroísmo e a gigantesca luta pessoal do personagem e, a outro, a falsidade da fantasia liberal de que a qualquer um é possível aceder ao triunfo e à realização pessoal, apenas com esforço e determinação próprias.

Vale a pena ver “Monsieur Chocolat.”

Jurista.

Escreve à terça-feira