Paulo Varela Gomes. “Merda, sou lúcido!”

Paulo Varela Gomes. “Merda, sou lúcido!”


O escritor e historiador de arte e da arquitetura morreu no sábado, aos 63 anos, de um cancro que lhe foi diagnosticado há quatro anos


É difícil apontar uma figura ao mesmo tempo tão relevante, pela força de irradiação das suas palavras, e com um tão transversal reconhecimento dos seus méritos – um saber vasto nos conhecimentos como nas vivências –, e por outro lado tão marginal, até excêntrica, pelo desajustamento das suas fortíssimas opiniões. Paulo Varela Gomes destacou-se para lá das áreas da sua especialidade técnica ou científica, como um intelectual cujo brilho se fez das qualidades do espírito, uma cultura constitutiva do caráter, pelo qual foi muito admirado e reconhecido.

A sua diferença no plano da cultura portuguesa prende-se a um grau de convicção e desassombramento, aos plenos poderes assumidos enquanto individualidade com um quadro de referências muito próprias, muitas vezes radical, e que, dono de um estilo elegante, conciso e perfeitamente claro, não perdia tempo com provocações, mas preferindo a linha do conflito aberto com a moral bem pensante. Foi um autor que reivindicou um olhar e tempo próprios, um ângulo particular e dilemático, nos diferentes modelos da sua intervenção pública, fosse na carreira académica – sendo professor associado no Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, com uma obra de investigação importante no campo da história da arquitetura e da arte –, fosse enquanto crítico e cronista, com uma enorme dispersão de textos na imprensa, ou, finalmente, como romancista. 

A literatura como testamento Com os dias contados e perante a consciência aguda do fim depois de, há quatro anos, lhe ter sido diagnosticado um cancro numa fase avançada, o período final da sua vida acabaria por constituir um ousado e derradeiro testemunho, em que a ameaça à sua luz o levou a assumir inteiramente aquela vocação que estivera sempre latente em todo o seu percurso: a literária. Como notou o crítico literário e amigo de longa data António Guerreiro num texto assinado no “Público” em que traça as linhas mestras do seu pensamento e obra, “a escrita literária foi para ele uma ação salvífica e testamentária, a que se entregou em estado de urgência”.

Além de uma brilhante e representativa reunião das crónicas, em “Ouro e Cinza”, publicou quatro romances, todos editados pela Tinta-da-China, que marcaram uma das mais impetuosas entradas em cena no terreno da literatura portuguesa, valendo-lhe elogios rasgados por parte da crítica, e o prémio PEN. Clube em 2015, atribuído a “Hotel”, publicado no ano anterior. O primeiro romance foi “O Verão de 2012”, que era marcado por uma notória carga autobiográfica, tendo nascido da revelação de que tinha um cancro e lhe restava pouco tempo de vida. “Passos Perdidos”, foi o último livro, publicado em fevereiro deste ano, e, tal como os anteriores, investe num tipo de narrativa que se serve da ficção como um eixo para que a imaginação se possa exercer entre digressões ensaísticas e que devolve o romance há sua mais nobre tradição enquanto discurso que abarca, cruza e transmuda os restantes géneros literários. 

A bravura da lucidez “Morrer é mais difícil do que parece”, o texto que publicou em maio de 2015 na versão portuguesa da revista “Granta”, marcou indubitavelmente um ponto decisivo na sua intervenção no espaço público. Tratou-se de um testemunho sobre a sua experiência enquanto doente com cancro em estado terminal, e a enorme repercussão que obteve, difundido de imediato pelas redes sociais, prende-se com a rara mistura de talento e bravura com que Paulo Varela Gomes descreve a sua experiência e revela a poderosa convulsão interior que lhe provocou. Não se poupando, nem ao leitor, aos aspetos mais dolorosos e angustiantes, a repassar o mais fundo do desespero, e que o levaram a afastar-se com uma pistola para pôr fim à vida, falando das razões, não propriamente consoladoras, que o levaram a não o fazer. Fiel até ao fim a essa lucidez que muito para lá do pragmatismo está mais do lado da coragem do ser que não desiste daquelas faculdades que o tornam resolutamente vivo, perspicaz, analítico, recusando-se a medidas de anestesia ou aos inúmeros paraísos artificiais.

De resto, ele mesmo referiu numa entrevista ao Canal Q, em 2013, que há um preço a pagar pela lucidez, elegeu o verso de Álvaro Campos “Merda, sou lúcido!”, e referiu que aqui o palavrão funciona não apenas como a noção de que há um peso que vem com um olhar que não contorna a realidade, mas que esse olhar é também uma escolha, que não basta ter as condições intelectuais é preciso saber suportá-las. E, no entanto, a lição passa por não permitir que essa lucidez sobre o mundo, os outros e sobre si mesmo se torne destrutiva. “Se um gajo gajo conseguir fazer da lucidez uma coisa positiva, excelente; senão acaba por cair num cinismo muito amargo e, então, não serve para nada”, conclui.

A cultura como política Nascido em 1952, filho do coronel João Varela Gomes, um militar que esteve ligado ao golpe de Beja, em 1961, e que se destacaria durante o PREC pelo seu papel da 5ª Divisão do MFA, Paulo Varela Gomes fez o curso de História na Faculdade de Letras de Lisboa, licenciando-se em 1978. Tanto nos anos de estudante universitário como nos do início da vida profissional enquanto professor no ensino secundário, manteve em paralelo uma participação na vida política, primeiramente enquanto militante da UEC – União dos Estudantes Comunistas, o braço estudantil do PCP então dirigido por Zita Seabra –, e já na década de 1990, afastando-se daquele partido para, ao lado de Miguel Portas, fundar o movimento Política XXI, um dos três grupos que estariam na génese do Bloco de Esquerda – projeto do qual cedo viria também a afastar-se.

Antes de se reformar em 2012, por causa da doença, era investigador no CES – Centro de Estudos Sociais e docente do programa de doutoramento Patrimónios da Influência Portuguesa. A sua intervenção pública conta ainda com duas séries documentais para a RTP, “O Mundo de Cá” — sobre as civilizações que os portugueses encontraram quando chegaram à Índia e a Ceilão — e “Malta Portuguesa” — sobre as relações ocultas entre Portugal e Malta e a evolução da fronteira ocidente-oriente desde as cruzadas até à atualidade. 

Escreveu profusamente sobre a Índia e, particularmente, sobre Goa, onde esteve enquanto delegado da Fundação Oriente por duas vezes, de 1996 a 1998 e de 2007 a 2009, refletindo sobre a imensa distância e a singular proximidade da ex-colónia com Portugal, e é notório tanto nas crónicas como no romance “Era Uma Vez em Goa (2015) o impacto que esses anos tiveram no seu percurso intelectual, ao ponto de, no regresso da Índia ter abandonado a cidade para se recolher no campo, na casa em Podentes, concelho de Penela. Casado, pai de dois filhos e avô de duas netas e de um neto, morreu em casa.