O Presidente da República inicia amanhã uma visita a Moçambique e o i associou-se ao “Sol do Índico”, que fez uma entrevista por escrito a MarceloRebelo de Sousa. Aqui fica expressa a ligação de Marcelo a África e a um país que tanto o marcou.
Passou parte da sua juventude em Moçambique. O que melhor recorda e o que mais o marcou nesse período?
O meu pai era governador-geral de Moçambique e eu estudava na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mas passei em Moçambique muito tempo, entre o verão de 1968 e dezembro de 1969: agosto e parte considerável de setembro e de dezembro de ambos os anos, e ainda um mês entre o primeiro e o segundo semestre escolares de 1969. Isso permitiu-me conhecer praticamente todo o território de Moçambique. O que mais me marcou? A capacidade única dos moçambicanos de criar amizade e de ser leal a essa amizade, a beleza natural, de norte a sul, a música – com a marrabenta à cabeça –, a riqueza criativa dos escritores, dos pintores e escultores; fiquei amigo e admirador de Craveirinha e de Chissano, e irmão inquebrantável de Malangatana, cuja doença final haveria de acompanhar diariamente em Lisboa, muitos anos depois; a junção singular da doçura com a determinação e a firmeza na defesa dos ideais. E depois o pôr-do-sol, o mar, a gastronomia… Tudo menos importante do que a amizade profunda, a doçura e a resistência pelas convicções.
O final da década de 60, ainda no período colonial, foi uma época de grande injustiça e forte discriminação em Moçambique. Por outro lado, o seu pai é, por muitos, recordado como um dos melhores – ou mesmo o melhor – governador de Moçambique, em contexto colonial, naturalmente. Apercebeu-se durante a sua estadia dessa situação? Como era o assunto encarado ou discutido no seu seio familiar?
Todos os dias era discutido. E o meu pai acabou por ser reconhecido como um bom governante por ser muito humano e muito simples. Ainda agora me contaram como, logo num dos primeiros dias, foi implacável perante um colaborador que quis ordenar as audiências em função de critério social ou cultural. Ou como aparecia de surpresa em serviços de saúde e descobria como, de facto, funcionavam. Dito isto, era evidente que se vivia o fim do império. E que nem mesmo a aposta em Cahora-Bassa alteraria o curso dos acontecimentos.
Namorou em Lourenço Marques?
Não, mas criei muitíssimas amizades. E apaixonei-me pela terra e pela maneira de ser das gentes.
Como nasceu em si a simpatia evidente que sempre expressa por Moçambique?
É muito mais do que simpatia. Afirmei mesmo sentir Moçambique como uma segunda pátria. E é difícil conhecer Moçambique e não se sentir uma irresistível atração. Por inúmeras razões como as que referi na resposta à vossa primeira pergunta.
Apesar das excelentes relações entre Moçambique e Portugal, algumas sombras do passado colonial persistem. O massacre de Mueda – na província de onde é oriundo o presidente Nyusi – tem suscitado diferentes interpretações nas historiografias dos dois Estados. Em Moçambique é uma lembrança dolorosa. Como interpreta a questão? Considera razoável que alguma vez o Estado português se redima pelos atos alegadamente perpetrados pelos seus militares sobre cidadãos que eram, à data, legalmente portugueses, na província de Cabo Delgado?
Todas as colonizações deixam marcas de variada natureza. E essas marcas são mais fundas em períodos de maior intervenção ou confronto armado. O grande desafio é avançar para o futuro, apostando naquilo que une e cria fraternidade. E permite mais desenvolvimento, justiça, cultura. E, claro, paz. Assumindo a história em tudo o que ela foi, sem subterfúgios e rodeios. Mas olhando para o que é possível construir de solidário, progressivo e mais justo.
Sendo a sua dimensão cristã plenamente assumida, muitos ficaram surpresos pelo ecletismo demonstrado na sua recente visita à mesquita de Lisboa. Essa sua faceta eclética deve algo a Moçambique?
O cristianismo ou é ecuménico ou não é verdadeiro cristianismo. O ecumenismo supõe capacidade de aceitar a diferença, de viver com diálogo e tolerância. E reconheço que Moçambique foi uma grande escola na minha formação. Com a importância indesmentível de muitas outras confissões religiosas, a começar nas islâmicas.
Tem acompanhado a situação política em Moçambique. Estaria Portugal disposto a ajudar o país a encontrar uma solução para o conflito que opõe o governo e a Renamo? E em que medida?
Se falo em Moçambique como segunda pátria, e escolhi Moçambique para primeira visita de Estado, isso quer dizer que vibro com tudo o que de bom sucede e estou aberto a apoiar tudo o que de bom pode suceder. Mas nada pior do que alguém querer tomar iniciativas não solicitadas, ainda que bem intencionadas. Arrisca-se a impedir ajudas futuras e a provocar problemas imediatos.
Algumas correntes de opinião em Moçambique falam de um certo desequilíbrio nas relações entre Moçambique e Portugal. Diz-se que há mais facilidades e melhores condições para portugueses em Moçambique do que o contrário. Este cenário inclui o acesso a diferentes oportunidades e serviços financeiros. Que perspetiva tem sobre a questão?
Também aqui, tudo o que possa fazer para aumentar o peso de Moçambique em Portugal, farei. E se houver desequilíbrios como os que refere, trabalharei para os superar. Tal como, se houver visão de que eles existem, mesmo que não sejam como Moçambique os perceciona, diligenciarei para que a melhor compreensão substitua a incompreensão.
Sendo a relação de Portugal com a CPLP uma das linhas estruturantes da política externa portuguesa, que aspetos considera que deveriam ser aperfeiçoados?
A CPLP vai debater uma nova estratégia para o futuro. Mais económica e financeira. Mais social. Mais próxima das pessoas. Mais atenta ainda à realidade. Eis uma boa ocasião para dar um salto qualitativo. Aliás, largamente preparado por um diligente e incansável secretário executivo moçambicano – de resto, meu antigo aluno e de quem guardo gratas recordações.
Nas relações entre os nossos dois Estados, o que quer mudar? O que quer dinamizar? Como encara o futuro do relacionamento entre os dois povos?
Há um leque muito vasto de passos a dar, na política como na cultura, na economia como nas finanças, no plano social como na cooperação internacional. E estou realisticamente esperançado num começo de novo ciclo nas relações entre as nossas duas pátrias e os nossos dois povos.
Que mensagens gostaria de deixar à comunidade moçambicana residente em Portugal e à comunidade portuguesa que reside em Moçambique?
Aos meus amigos moçambicanos – tantos deles meus antigos alunos – que vivem em Portugal dirijo uma palavra de agradecimento e fraternidade pelo que têm contribuído para a nossa vida coletiva. Aos compatriotas que vivem em Moçambique dirijo idêntica palavra – de fraterna gratidão pelo que têm dado aos dois países e à sua convergência no presente e no futuro. Bem hajam uns e outros! O Presidente da República de Portugal manifesta-lhes um profundo reconhecimento, em nome de todos os portugueses.