Paulo Varela Gomes. “A Wikipedia devia ganhar, de uma assentada, todos os prémios Nobel”

Paulo Varela Gomes. “A Wikipedia devia ganhar, de uma assentada, todos os prémios Nobel”


Especialista em Património, História da Arte e História da Arquitetura, Paulo Varela Gomes (1952) tem uma vasta obra académica na área. 


Foi professor do ensino secundário e superior, tendo-se reformado em 2012. Na área da ficção, publicou no ano seguinte “O Verão de 2012”, a que se sucederam “Era uma Vez em Goa”, “Hotel”, vencedor do prémio PEN Narrativa 2015, e agora “Passos Perdidos” (uma expressão que se aplica “às salas de espera, tanto dos tribunais, como das estações de caminhode-ferro e dos parlamentos, lugares onde todos os passos são efetivamente perdidos porque, na nulidade desses espaços inertes, sem função que não seja de servir outros espaços, entra-se na esperança de sair o mais depressa possível”). Precisamente no Verão de 2012 foi-lhe diagnosticado um cancro e os médicos deram-lhe pouco tempo de vida. Recorreu à homeopatia e descreveu a experiência em “Morrer é mais difícil do que parece”, um texto cru e assombroso que integrou a Granta n.º 5 e mereceu a ovação da comunidade literária. O autor respondeu ao i por email. 

Publicou o seu primeiro romance bastante tarde e o segundo logo de seguida. Era algo que queria fazer há mais tempo mas que, por circunstâncias da vida, andava a adiar?

Escrevi esboços de romance, contos, poemas, publiquei alguns livrinhos, todos sob pseudónimo, na década de 1980. Depois, a vida complicou-se – ou simplificou-se. Tornei-me pouco a pouco um académico e, nessa qualidade, escrevi vários livros e artigos na minha área universitária, a história da arquitetura e da arte. Não houve mais vontade – e ainda menos ocasião – para voltar ao suave território da prosa que, por mais complexa que seja, não dá tanto trabalho de formiguinha como a escrita académica. Mas, sabe?, aos 13 ou 14 anos, compus uma peça de teatro em três actos e alguns poemas. Estava escrito nas estrelas que havia de voltar à escrita não-académica. Foi por ela que comecei e com ela que aprendi.

A ideia para “Passos Perdidos” surgiu depois de terminar “Hotel”?

“Passos Perdidos” foi o primeiro livro que quis escrever, ainda antes do verão de 2012. Era um devaneio de romance, um sonho sem plano. Depois, entrou o cancro em cena e o meu relógio acelerou como um cavalo maluco. 

Aparentemente o livro foi escrito em muito pouco tempo. Pode dizer-me alguma coisa sobre a sua escrita (se tem alguma hora do dia e local preferencial para escrever, durante quanto tempo se mantém concentrado, se escreve diretamente no computador ou à mão)?

Como toda a gente terá percebido, há muito de escrita académica na minha escrita não-académica. Isso implica investigação. Horas e horas na internet ou em volta de alguns livros que ainda tenho para aqui (ofereci a grande maioria a amigos e instituições). Penso que a internet, que há 20 anos não existia para nada de útil, mostrou ser uma das poucas máquinas que virou a vida da humanidade do avesso: a roda (e o eixo), o arado, a cartografia moderna, a máquina a vapor. Tenho uma admiração sem limites pelas pessoas que trabalham na net. Acho que a Wikipedia devia ganhar, de uma assentada, todos os Prémios Nobel, incluindo o da paz. Trabalho muito na Internet. Quando não estou excessivamente doente, escrevo, deitado na cama, frente à janela, à mata e à vinha lá fora, todos os dias, das 10 da manhã às 5 ou 6 da tarde. Consulto, investigo, penso, escrevo e farto-me de corrigir o que escrevi. O livro foi escrito em relativamente pouco tempo, é verdade. Tudo aquilo de que disponho em matéria de tempo é relativamente pouco. 

Já esteve na ilha de Santa Helena?

Nunca estive em Santa Helena. “Conheço” o lugar por “viagens” minuciosas pelo Google Earth e os Google Maps e pela leitura de, literalmente, dezenas de livros sobre a ilha, antigos e modernos. Não tinha grande interesse em Santa Helena. Aparece no livro por necessidade “interna ao livro”, por assim dizer. “Fui” a Santa Helena por causa de Napoleão e da Menina Balcombe (Betsy) [que privou com Napoleão durante o exílio em Santa Helena e nos deixou as suas memórias]. 

Os locais por onde passam as personagens refletem as suas viagens?

Conheço Malta – que adoro –, partes da Índia, a Baviera, Bélgica, Itália, França, Marrocos. Não há dúvida que, quando podia viajar, fazia-o com quatro olhos: um para ver, outro para ler, um terceiro para aprender, o quarto para buscar indícios para histórias ou temas para a escrita.

“La Valleta é a cidade mais bonita do mundo”. Esta é a sua opinião a sair pela boca de uma personagem?

Sim. Tenho o meu top 10 de cidades do mundo – toda a gente tem, se pensar nisso. Valletta está em primeiro lugar seguida de Paris e depois do Rio – não podiam ser sítios mais diferentes, mas têm água e horizontes largos.

Também se interessa, como Anna W., por ilhas?

Muitíssimo. E pelo mesmo género de ilhas que ela. Ilhas pequenas e complexas. 

Descreve as salas dos passos perdidos como sítios desinteressantes e uma espécie de não-lugares. Apesar disso, exercem sobre si algum fascínio?

Interessa-me a sua extraordinária beleza (sobre-humana) e engenho arquitectónico. Não se passa lá (quase) nada. Pois tanto melhor, mais brilha o espaço, desmesurado e fechado sobre si mesmo, um espaço tanto de ecos como de vistas. Só algumas salas dos passos perdidos são assim. Coloquei uma lista no livro, um procedimento a que só faltam as notas de rodapé para ser académico. Dedico a lista aos meus ex-alunos e colegas. Quem sabe se não virão a escrever um “Livro dos Passos Perdidos”, um livro académico decentemente investigado e ilustrado.

Muitas vezes dirige-se à leitora. Imagina o seu leitor ideal como uma mulher?

Tentei alternar o mais regularmente possível – e falhei na regularidade – o género a que me dirijo. É uma coisa politicamente correta! Adoro fazer coisas politicamente corretas de vez em quando.

Por que optou por não dar nomes completos às personagens, mas antes iniciais (Anna W., C. Brandon)? É para deixar a imaginação do leitor a trabalhar?

No que diz respeito a este assunto, “Passos Perdidos” é um romance à clef [inspirado em personagens reais]. Estas duas figuras existiram, uma delas no mundo “real”, outra no mundo da literatura. E foram escolhidas para aquilo que era preciso: uma rapariga muito jovem, desejada por homens mais velhos, e um homem que é vítima de um amor não correspondido.

Diz que esse homem, C. Brandon, foi colega do escritor W.G. Sebald. Além disso, o interesse dele por arquitetura, nomeadamente estações de caminho-de-ferro, faz lembrar o de Austerlitz, o protagonista do romance de Sebald. É uma homenagem ao escritor alemão?

Sebald foi, penso eu, o mais importante escritor do mundo da segunda metade do século XX. A minha admiração por ele não tem limites. E a minha inveja tão pouco.

Colocou em epígrafe a frase: ‘Este livro foi escrito quando o autor ainda não era cristão’. Quando se converteu e por que meio o fez? Viveu alguma epifania?

Houve um momento desses mas aconteceu há uns anos e não percebi o que me estava a acontecer. Fui batizado quando era criança e as minhas estadas na Índia, onde mantive um contacto estreito com os católicos indianos e a Igreja indiana, fizeram-me recordar o batismo e a doutrina. O ano passado (2015), um sacerdote católico interessou-se pelos meus livros e achou que se anunciava ali a presença de Cristo. Quando este sacerdote veio ter comigo, passámos várias semanas a encontrar-nos regularmente. Até que senti que era cristão, converti-me ao catolicismo e casei pela Igreja. Nesta altura já estava praticamente escrito “Passos Perdidos”. 

Logo no início do livro, pode ler-se “A certa altura, o autor ficou demasiado doente, e os Passos Perdidos detiveram-se enfim”. Considera este um livro imperfeito (no sentido de inacabado)?

Essas observações [parágrafos que surgem “enxertados” na narrativa] são uma coisa “literária” que eu quis fazer, variar a rapidez e altura da escrita, como fazem os compositores com a música. Mas também é verdade que esta “coisa (truque?) literária” ajudou-me a curto-circuitar períodos muito maus da minha saúde nos quais não me senti capaz de escrever uma linha decente para amostra.

Estava à espera que o seu texto “Morrer é mais difícil do que parece” suscitasse tantos aplausos?

Não, em absoluto. Fiquei de boca aberta. Agradeço a generosidade de todas estas pessoas. Que Deus os abençoe a todos, cristãos e não-cristãos.

Entrevista realizada a 25 de fevereiro de 2016