Foi professor do ensino secundário e superior, tendo-se reformado em 2012. Na área da ficção, publicou no ano seguinte “O Verão de 2012”, a que se sucederam “Era uma Vez em Goa”, “Hotel”, vencedor do prémio PEN Narrativa 2015, e agora “Passos Perdidos” (uma expressão que se aplica “às salas de espera, tanto dos tribunais, como das estações de caminhode-ferro e dos parlamentos, lugares onde todos os passos são efetivamente perdidos porque, na nulidade desses espaços inertes, sem função que não seja de servir outros espaços, entra-se na esperança de sair o mais depressa possível”). Precisamente no Verão de 2012 foi-lhe diagnosticado um cancro e os médicos deram-lhe pouco tempo de vida. Recorreu à homeopatia e descreveu a experiência em “Morrer é mais difícil do que parece”, um texto cru e assombroso que integrou a Granta n.º 5 e mereceu a ovação da comunidade literária. O autor respondeu ao i por email.
Publicou o seu primeiro romance bastante tarde e o segundo logo de seguida. Era algo que queria fazer há mais tempo mas que, por circunstâncias da vida, andava a adiar?
Escrevi esboços de romance, contos, poemas, publiquei alguns livrinhos, todos sob pseudónimo, na década de 1980. Depois, a vida complicou-se – ou simplificou-se. Tornei-me pouco a pouco um académico e, nessa qualidade, escrevi vários livros e artigos na minha área universitária, a história da arquitetura e da arte. Não houve mais vontade – e ainda menos ocasião – para voltar ao suave território da prosa que, por mais complexa que seja, não dá tanto trabalho de formiguinha como a escrita académica. Mas, sabe?, aos 13 ou 14 anos, compus uma peça de teatro em três actos e alguns poemas. Estava escrito nas estrelas que havia de voltar à escrita não-académica. Foi por ela que comecei e com ela que aprendi.
A ideia para “Passos Perdidos” surgiu depois de terminar “Hotel”?
“Passos Perdidos” foi o primeiro livro que quis escrever, ainda antes do verão de 2012. Era um devaneio de romance, um sonho sem plano. Depois, entrou o cancro em cena e o meu relógio acelerou como um cavalo maluco.
Aparentemente o livro foi escrito em muito pouco tempo. Pode dizer-me alguma coisa sobre a sua escrita (se tem alguma hora do dia e local preferencial para escrever, durante quanto tempo se mantém concentrado, se escreve diretamente no computador ou à mão)?
Como toda a gente terá percebido, há muito de escrita académica na minha escrita não-académica. Isso implica investigação. Horas e horas na internet ou em volta de alguns livros que ainda tenho para aqui (ofereci a grande maioria a amigos e instituições). Penso que a internet, que há 20 anos não existia para nada de útil, mostrou ser uma das poucas máquinas que virou a vida da humanidade do avesso: a roda (e o eixo), o arado, a cartografia moderna, a máquina a vapor. Tenho uma admiração sem limites pelas pessoas que trabalham na net. Acho que a Wikipedia devia ganhar, de uma assentada, todos os Prémios Nobel, incluindo o da paz. Trabalho muito na Internet. Quando não estou excessivamente doente, escrevo, deitado na cama, frente à janela, à mata e à vinha lá fora, todos os dias, das 10 da manhã às 5 ou 6 da tarde. Consulto, investigo, penso, escrevo e farto-me de corrigir o que escrevi. O livro foi escrito em relativamente pouco tempo, é verdade. Tudo aquilo de que disponho em matéria de tempo é relativamente pouco.
Já esteve na ilha de Santa Helena?
Nunca estive em Santa Helena. “Conheço” o lugar por “viagens” minuciosas pelo Google Earth e os Google Maps e pela leitura de, literalmente, dezenas de livros sobre a ilha, antigos e modernos. Não tinha grande interesse em Santa Helena. Aparece no livro por necessidade “interna ao livro”, por assim dizer. “Fui” a Santa Helena por causa de Napoleão e da Menina Balcombe (Betsy) [que privou com Napoleão durante o exílio em Santa Helena e nos deixou as suas memórias].
Os locais por onde passam as personagens refletem as suas viagens?
Conheço Malta – que adoro –, partes da Índia, a Baviera, Bélgica, Itália, França, Marrocos. Não há dúvida que, quando podia viajar, fazia-o com quatro olhos: um para ver, outro para ler, um terceiro para aprender, o quarto para buscar indícios para histórias ou temas para a escrita.
“La Valleta é a cidade mais bonita do mundo”. Esta é a sua opinião a sair pela boca de uma personagem?
Sim. Tenho o meu top 10 de cidades do mundo – toda a gente tem, se pensar nisso. Valletta está em primeiro lugar seguida de Paris e depois do Rio – não podiam ser sítios mais diferentes, mas têm água e horizontes largos.
Também se interessa, como Anna W., por ilhas?
Muitíssimo. E pelo mesmo género de ilhas que ela. Ilhas pequenas e complexas.
Descreve as salas dos passos perdidos como sítios desinteressantes e uma espécie de não-lugares. Apesar disso, exercem sobre si algum fascínio?
Interessa-me a sua extraordinária beleza (sobre-humana) e engenho arquitectónico. Não se passa lá (quase) nada. Pois tanto melhor, mais brilha o espaço, desmesurado e fechado sobre si mesmo, um espaço tanto de ecos como de vistas. Só algumas salas dos passos perdidos são assim. Coloquei uma lista no livro, um procedimento a que só faltam as notas de rodapé para ser académico. Dedico a lista aos meus ex-alunos e colegas. Quem sabe se não virão a escrever um “Livro dos Passos Perdidos”, um livro académico decentemente investigado e ilustrado.
Muitas vezes dirige-se à leitora. Imagina o seu leitor ideal como uma mulher?
Tentei alternar o mais regularmente possível – e falhei na regularidade – o género a que me dirijo. É uma coisa politicamente correta! Adoro fazer coisas politicamente corretas de vez em quando.
Por que optou por não dar nomes completos às personagens, mas antes iniciais (Anna W., C. Brandon)? É para deixar a imaginação do leitor a trabalhar?
No que diz respeito a este assunto, “Passos Perdidos” é um romance à clef [inspirado em personagens reais]. Estas duas figuras existiram, uma delas no mundo “real”, outra no mundo da literatura. E foram escolhidas para aquilo que era preciso: uma rapariga muito jovem, desejada por homens mais velhos, e um homem que é vítima de um amor não correspondido.
Diz que esse homem, C. Brandon, foi colega do escritor W.G. Sebald. Além disso, o interesse dele por arquitetura, nomeadamente estações de caminho-de-ferro, faz lembrar o de Austerlitz, o protagonista do romance de Sebald. É uma homenagem ao escritor alemão?
Sebald foi, penso eu, o mais importante escritor do mundo da segunda metade do século XX. A minha admiração por ele não tem limites. E a minha inveja tão pouco.
Colocou em epígrafe a frase: ‘Este livro foi escrito quando o autor ainda não era cristão’. Quando se converteu e por que meio o fez? Viveu alguma epifania?
Houve um momento desses mas aconteceu há uns anos e não percebi o que me estava a acontecer. Fui batizado quando era criança e as minhas estadas na Índia, onde mantive um contacto estreito com os católicos indianos e a Igreja indiana, fizeram-me recordar o batismo e a doutrina. O ano passado (2015), um sacerdote católico interessou-se pelos meus livros e achou que se anunciava ali a presença de Cristo. Quando este sacerdote veio ter comigo, passámos várias semanas a encontrar-nos regularmente. Até que senti que era cristão, converti-me ao catolicismo e casei pela Igreja. Nesta altura já estava praticamente escrito “Passos Perdidos”.
Logo no início do livro, pode ler-se “A certa altura, o autor ficou demasiado doente, e os Passos Perdidos detiveram-se enfim”. Considera este um livro imperfeito (no sentido de inacabado)?
Essas observações [parágrafos que surgem “enxertados” na narrativa] são uma coisa “literária” que eu quis fazer, variar a rapidez e altura da escrita, como fazem os compositores com a música. Mas também é verdade que esta “coisa (truque?) literária” ajudou-me a curto-circuitar períodos muito maus da minha saúde nos quais não me senti capaz de escrever uma linha decente para amostra.
Estava à espera que o seu texto “Morrer é mais difícil do que parece” suscitasse tantos aplausos?
Não, em absoluto. Fiquei de boca aberta. Agradeço a generosidade de todas estas pessoas. Que Deus os abençoe a todos, cristãos e não-cristãos.
Entrevista realizada a 25 de fevereiro de 2016