William Shakespeare. O espectáculo da condição humana

William Shakespeare. O espectáculo da condição humana


Quatro séculos depois da morte de Shakespeare, o império da sua influência vai para lá das histórias que celebrizou. Está todos os dias na boca do povo, mesmo sem este o saber


Se até na língua de Camões encontramos hoje os vestígios do génio de William Shakespeare, expressões e até palavras, ditos que de tão repetidos viraram frases feitas, mas que escondem o balanço de quatro séculos, como bengalas para o discurso das quais nos apropriámos sem fazer ideia de quem as talhou. “De armas e bagagens”, “mais vítima que carrasco”, “pompa e circunstância”, “nem tudo o que reluz é ouro”, “pôr o carro à frente dos bois”, “o que não tem remédio remediado está” são apenas alguns exemplos de expressões de uso comum que nasceram da pena do bardo inglês. Mas pense-se o tráfico que foi feito pelo mundo inteiro, entre tantas línguas que pediram emprestado a esse fôlego que se extinguiu sem sequer ter visto as suas peças publicadas em vida.
Cerca de meia centena de provérbios são-lhe atribuídos na língua inglesa, expressões vivas que se incrustaram na alma da própria língua, o requinte e desembaraço no modo como voltejava um vocabulário de 30 mil palavras, um que pulsa, conspira, sibila, geme, espuma de raiva, alarma os deuses e intriga o demónio. 400 anos depois, tantas eras consumidas, razões que tiveram o mundo e caíram à sua margem, foram esquecidas, mas Shakespeare é ainda um destino, uma obra que não se deixa vencer e espelha imortalmente os conflitos íntimos e coletivos da humanidade. 
D.H. Lawrence falou do impressionante deslumbramento que sentia ao ler o bardo, pela forma como vidas e figuras às vezes tão banais eram capazes de meditações ou acessos explosivos numa linguagem de tão grande beleza. O encanto de Shakespeare começa por aí. Boa parte das palavras que planta na boca dos seus personagens ele mesmo as concebia, actor toda a vida, quando escrevia não descia do palco, trabalhando, como já foi sugerido por alguns especialistas na sua obra, com o furor experimental de um químico, alterando a composição nuclear das palavras, além de bater, partir e juntar, pondo em causa a sua morfologia, sendo que em palco não havia limite para o acordo entre o actor e o seu público, nada o impedia de fazer do próprio inglês a cena de uma exaltação e tumulto bárbaros. E é precisamente da sua capacidade de ser o Janus dos poetas, de usar em tudo o que fazia duas caras, como notou John Dryden, que Shakespeare consegue ser e não ser as suas personagens, estar com elas nos seus dramas, vivê-los e superá-los. Este dom de ser múltiplo, levou outro poeta, Coleridge, a cunhar em sua honra o magistral termo a "mente-míriade".
Shakespeare é intemporal não apenas porque capturou aquilo que de mais nobre ou repulsivo pode fermentar na alma humana, mas porque na mais larga escala das nossas emoções nenhum evento da história deixa de tocar alguma das suas cordas. Há sempre um verso ou uma passagem que nos traz um prisma novo encarar os novos eventos, mesmo aqueles que aconteceram séculos depois do seu tempo. Por esta razão, o crítico e historiador francês Hyppolite Taine dizia que Shakespeare, e depois Balzac, “são os maiores repositórios de documentos que possuímos sobre a natureza humana”. 
Em algum momento, nos conflitos que gizou idealmente, as suas personagens encontram-se na disposição certa e perante um quadro de circunstâncias que faz delas as porta-vozes da humanidade no que toca a encarnar sentimentos sublimes e os sórdidos, capazes das maiores virtudes e da mais venenosa perversidade. Perder-se nas suas histórias é estudar o relógio interno que faz que homens e mulheres criem a sensação do tempo através das suas ações e intrigas, paixões e esperanças, ou do desespero e da melancolia que sentem. O ciúme, a inveja, a ambição pelo poder e a própria loucura são a matéria da sua obra. Foi Shakespeare, afinal, quem escreveu: “Fechado numa casca de noz eu poderia julgar-me rei de um espaço infinito.”
Ao mesmo tempo, e com o conhecimento profundo que revelou da natureza humana, é irónico o quão pouco se sabe da sua prória vida. A sua biografiapermanece envolta num tão cerrado mistério que a busca por pistas sobre a sua passagem pela terra se tornou uma espécie de demanda do graal.
No volume que lhe dedica, Bill Bryson nota que “calculada por alto, a quantidade de tinta que se tem gasto com Shakespeare é assombrosamente grotesca”, referindo como a revista bibliográfica “Shakespeare Quaterly”, regista todos os anos o aparecimento de quatro mil novas obras de fôlego, entre livros monografias e outros estudos. E a razão por que o vulto de Shakespeare mantém quatro séculos após a sua morte um tão grande apelo é o facto de em vida ter deixado apenas as peças suficientes, dispersas, para que essa ausência possa aguçar mais ainda a curiosidade e a imaginação dos seus devotos. 
Sabe-se realmente muito pouco sobre os factos da vida do bardo, não há sequer a certeza se aquele rosto que logo reconhecemos como seu é mesmo seu, já que ninguém pode dizer que sabe realmente como ele era.  As três representações do génio inglês das quais todas as outras derivam são um retrato de cujas origens pouco ou nada se sabe, a gravura de cobre que aparece no frontispício do famoso First Folio – a coletânea das obras de Shakespeare publicada sete anos após a sua morte –,  só é exemplar pela quantidade de defeitos que na forma como lhe recorda as feições, e finalmente há a estátua pintada e em tamanho natural que constituí a peça central do monumento a Shakespeare na Holy Trinity Church, em Stratford-upon-Avon, onde está sepultado. Apesar de o seu valor artístico não ser maior que o das outras duas representações, esta “tem ao menos o mérito de ter sido vista e presumivelmente aceite como satisfatória por pessoas que conheceram Shakespeare”. Como nota Bryson na investigação que lhe dedica: “Shakespeare é simultaneamente a mais famosa e a mais obscura de todas as personalidades conhecidas”.
Ao fim destes quatrocentos anos, com um número sem fim de vidas que se entregaram à tentativa de traçar com melhor precisão os contornos de um homem cuja sombra não deixa de se espalhar, os investigadores localizaram não mais do que cerca de cem documentos sobre o bardo e a sua família próxima, entre registos de batismo, títulos de posse de propriedades, certidões de impostos, promissórias de casamento, mandados de penhora, autos judiciais, e por aí adiante. Mas o problema da burocracia é que se esta se mostra útil na hora de organizar as sociedades, fazer o rastreio dos negócios de cada pessoa, o testemunho que deixa de uma vida é demasiado ténue para se conseguir conhecer alguém. Foi uma sorte que as suas palavras nos tenham chegado, um legado de cerca de um milhão de palavras, e se parece inesgotável, há também uma infinidade de coisas de importância fundamental que não se sabem. Não se sabe sequer quantas peças de teatro escreveu ou a ordem em que escreveu aquelas que conhecemos.
No fim, nenhuma das circunstâncias pessoais de Shakespeare, fosse o seu lugar de nascimento, filiação, educação, círculo de amigos ou outros, fizeram dele um homem especialmente notável no seu tempo. De resto, a sua morte a 23 de Abril de 1616 (o mesmo dia em que normalmente é dado por nascido 52 anos antes, em 1564, o dia de S. Jorge) passou largamente despercebida, e não houve nenhuma grande cerimónia quando os seus restos mortais foram colocados na Holy Trinity Church. Ninguém se lembrou de propor que ele fosse enterrado na Abadia de Westminster ao lado de Chaucer ou Spenser, honra que foi feita a Francis Beaumont, um colega dramaturgo que morreu no mesmo ano, e que viria a acolher também o seu amigo Ben Jonson uns anos mais tarde. Jonson que foi o primeiro escritor a reconhecer a importância fundamental da sua obra na mais vasta paisagem da literatura e não apenas como um escritor de sucesso de peças que atingiram um grande nível de popularidade no seu tempo.
É também essa a distância a que estamos hoje do homem que escreveu Hamlet, Macbeth, Julius Caeser e Romeu e Julieta. Porque se o próprio nome de Shakespeare veio a tornar-se um nome que associamos à própria ideia de literatura, de uma cultura clássica e erudita, a verdade é que no seu tempo se o talento dramático que revelou fez dele um dos autores preferidos dos palcos londrinos, ele não era o dramaturgo que fazia o seu público rejubilar por estar a apreciar algo que conferia distinção cultural. Shakespeare, de quem hoje é comum dizer-se que nos anos finais da sua vida se aburguesou, deixando Londres para regressar ao campo, para a mesma Stratford que o vira nascer, vivendo de rendas, este Shakespeare não terá vislumbrado o império de influência que a sua obra viria a deter. O bardo era então reconhecido como um mestre na arte de entreter, alguém que escrevia peças tão acessíveis para os iletrados que assistia às suas peças em pé, vibrando com a ação e pronunciando-se de forma não muito diferente do que fazem hoje os adeptos num jogo de futebol, como eram acessíveis para a elite sentada nos lugares superiores em cadeiras almofadadas. As suas peças eram especialmente ardilosas na forma como misturavam o que era de bom e mau tom, a elevação e o mais ordinário, sendo Shakespeare um dos dramaturgos que mais desafiou as convenções e as tentativas de patrulhar as fronteiras do gosto artístico. Se a sua escrita se notabilizou pelas alturas que escalou em enlevos cheios de subtileza e passagens de delicadeza insuperável, também lá estão os trocadilhos obscenos, as canções populares e, com algumas das suas peças a prolongarem-se até às quatro horas não podiam dispensar as cenas de esgrima a intervalos estudados para não permitir que a audiência desfalecesse.