Qual a minha formação? Andei na Cancer School


Nesta escola ensinavam-me a ter paciência, a pensar noutra coisa e a virar a cara enquanto me picavam, a ser forte e bem-disposta, a comer tudo até ao fim


Desde que me conheço como gente que me lembro da escola. Comecei por construir paredes com legos e por sujar as mãos com tinta para depois fazer uma tela, numa escola onde nunca nada me faltou, muito menos comida, mas onde, quando apanhava os outros distraídos, lá marchava o macaquinho pela boca abaixo, e ainda nem era a hora do lanche. Depois de aprender a tabuada a cantar, de escrever a cópia do Sapo Simão e de brincar ao toca-e-foge, com direito a joelhos esfolados, ranho e rock’n’roll, passei para a escola “dos grandes”, mas ainda apaixonada pelas Navegantes da Lua. Substituí-as pela “Malhação”, viciei–me na revista “Bravo” e fiz cochichos com o jogo verdade ou consequência, com direito a relato no diário. Comprei gelados a dez cêntimos que mais não eram do que um bocado de gelo, que sabiam a coca-cola e a luxo e que colavam as mãos, e sonhei que me casava com o meu professor de Educação Física, que andava sempre de fato-de-treino e cheirava a água-de-colónia cara.

Gostei sempre da escola. Chorava nas férias de verão, com saudades dos amigos e do recreio, das histórias e das conspirações contra as outras turmas, dos namorados imaginários e dos segredos escritos nas paredes da rodoviária. Andei sempre na escola, despenteada e feliz, com cadernos cor-de-rosa e canetas de cor, com fome de vida e desejos de ter muitas profissões, feliz e amada, por ser tão fácil viver.

Mas depois mudei. Mudei eu e mudei de escola. Esta escola nova já não era tão divertida, apesar de não ter professores, apesar de os adultos serem sempre sorridentes. A turma era variada, com alunos que entravam com cabelo e saíam carecas, ou não saíam e voavam para o céu, e os trabalhos de casa eram mais difíceis de fazer. Nesta escola ensinavam-me a ter paciência, a pensar noutra coisa e a virar a cara enquanto me picavam, a ser forte e bem-disposta, a comer tudo até ao fim.

Chamo a esta escola Cancer School porque é mais chique, parece coisa internacional e acho mais graça assim. Ainda não sabia quando aqui andava, mas teria na Cancer School a maior e a mais importante das formações. Ninguém me garantiu que sairia melhor pessoa, mas foram-me dadas todas as ferramentas para que isso acontecesse. Se eu estivesse atenta e aprendesse a lição, poderia transformar-me em alguém melhor. Se fizesse os TPC, se quisesse crescer de verdade e se aproveitasse as oportunidades, a Cancer School poderia ensinar–me muitas coisas. Ou poderia não me ensinar nada se não fizesse a minha parte. Se eu achasse que nada se aprende no sofrimento e na perda.

Reclamei, bufei, desesperei, achei tantas vezes que era tudo uma grande seca e uma grande injustiça, como é apanágio de um adolescente cliché, chorei com motivos e sem motivos, quis que me deixassem em paz, mas nunca pensei em desistir. Passei por vários testes e tive diferentes notas que fui dando a mim mesma na minha autoavaliação ao longo do ano. Considero que mereci um “Satisfaz” na disciplina Obediência aos Pais (já vos contei na última crónica que rebentei a costura onde me foi feita a biópsia) e na disciplina Socialização no Hospital (poderia ter falado com mais meninos e meninas). Classifiquei-me com um “Bom” na disciplina Paciência e Gratidão e uns merecidos “Excelentes” nas cadeiras Coragem e Boa Disposição.

Fui uma boa aluna. Claro que não dei o devido valor à Cancer School porque, nesta como nas outras escolas, só percebemos para que serve o que aprendemos muito tempo depois. Claro que não aproveitei o tempo da melhor maneira, claro que não soube agradecer a todos os que me inspiraram, claro que saí da Cancer School aliviada por ter acabado, desejosa que chegasse o verão e a dizer “nunca mais lá meto os pés”. Mas claro que aprendi muito. Aprendi coisas que em mais lado algum poderia ter aprendido. Aprendi a viver o amor, antes mesmo de o saber definir, aprendi a valorizar o bom tempo mesmo antes de ser autorizada a apanhar sol novamente. Aprendi a entender conceitos complexos como efemeridade da vida e morte, e aprendi a escrever gratidão sem caneta, apenas com o olhar e o toque das mãos.

Sempre adorei andar na escola, mesmo naquela a que fui forçada a ir porque, apesar de ter sido tão difícil de frequentar, foi na Cancer School que aprendi mais e melhor. A escola que tanto me fez perder foi, incrivelmente, a que também mais me deu a ganhar. A que mais me marcou.

Mas não é sempre assim?

Marine Antunes

Cancer School. Turma de 2003

Blogger

Escreve à quinta-feira


Qual a minha formação? Andei na Cancer School


Nesta escola ensinavam-me a ter paciência, a pensar noutra coisa e a virar a cara enquanto me picavam, a ser forte e bem-disposta, a comer tudo até ao fim


Desde que me conheço como gente que me lembro da escola. Comecei por construir paredes com legos e por sujar as mãos com tinta para depois fazer uma tela, numa escola onde nunca nada me faltou, muito menos comida, mas onde, quando apanhava os outros distraídos, lá marchava o macaquinho pela boca abaixo, e ainda nem era a hora do lanche. Depois de aprender a tabuada a cantar, de escrever a cópia do Sapo Simão e de brincar ao toca-e-foge, com direito a joelhos esfolados, ranho e rock’n’roll, passei para a escola “dos grandes”, mas ainda apaixonada pelas Navegantes da Lua. Substituí-as pela “Malhação”, viciei–me na revista “Bravo” e fiz cochichos com o jogo verdade ou consequência, com direito a relato no diário. Comprei gelados a dez cêntimos que mais não eram do que um bocado de gelo, que sabiam a coca-cola e a luxo e que colavam as mãos, e sonhei que me casava com o meu professor de Educação Física, que andava sempre de fato-de-treino e cheirava a água-de-colónia cara.

Gostei sempre da escola. Chorava nas férias de verão, com saudades dos amigos e do recreio, das histórias e das conspirações contra as outras turmas, dos namorados imaginários e dos segredos escritos nas paredes da rodoviária. Andei sempre na escola, despenteada e feliz, com cadernos cor-de-rosa e canetas de cor, com fome de vida e desejos de ter muitas profissões, feliz e amada, por ser tão fácil viver.

Mas depois mudei. Mudei eu e mudei de escola. Esta escola nova já não era tão divertida, apesar de não ter professores, apesar de os adultos serem sempre sorridentes. A turma era variada, com alunos que entravam com cabelo e saíam carecas, ou não saíam e voavam para o céu, e os trabalhos de casa eram mais difíceis de fazer. Nesta escola ensinavam-me a ter paciência, a pensar noutra coisa e a virar a cara enquanto me picavam, a ser forte e bem-disposta, a comer tudo até ao fim.

Chamo a esta escola Cancer School porque é mais chique, parece coisa internacional e acho mais graça assim. Ainda não sabia quando aqui andava, mas teria na Cancer School a maior e a mais importante das formações. Ninguém me garantiu que sairia melhor pessoa, mas foram-me dadas todas as ferramentas para que isso acontecesse. Se eu estivesse atenta e aprendesse a lição, poderia transformar-me em alguém melhor. Se fizesse os TPC, se quisesse crescer de verdade e se aproveitasse as oportunidades, a Cancer School poderia ensinar–me muitas coisas. Ou poderia não me ensinar nada se não fizesse a minha parte. Se eu achasse que nada se aprende no sofrimento e na perda.

Reclamei, bufei, desesperei, achei tantas vezes que era tudo uma grande seca e uma grande injustiça, como é apanágio de um adolescente cliché, chorei com motivos e sem motivos, quis que me deixassem em paz, mas nunca pensei em desistir. Passei por vários testes e tive diferentes notas que fui dando a mim mesma na minha autoavaliação ao longo do ano. Considero que mereci um “Satisfaz” na disciplina Obediência aos Pais (já vos contei na última crónica que rebentei a costura onde me foi feita a biópsia) e na disciplina Socialização no Hospital (poderia ter falado com mais meninos e meninas). Classifiquei-me com um “Bom” na disciplina Paciência e Gratidão e uns merecidos “Excelentes” nas cadeiras Coragem e Boa Disposição.

Fui uma boa aluna. Claro que não dei o devido valor à Cancer School porque, nesta como nas outras escolas, só percebemos para que serve o que aprendemos muito tempo depois. Claro que não aproveitei o tempo da melhor maneira, claro que não soube agradecer a todos os que me inspiraram, claro que saí da Cancer School aliviada por ter acabado, desejosa que chegasse o verão e a dizer “nunca mais lá meto os pés”. Mas claro que aprendi muito. Aprendi coisas que em mais lado algum poderia ter aprendido. Aprendi a viver o amor, antes mesmo de o saber definir, aprendi a valorizar o bom tempo mesmo antes de ser autorizada a apanhar sol novamente. Aprendi a entender conceitos complexos como efemeridade da vida e morte, e aprendi a escrever gratidão sem caneta, apenas com o olhar e o toque das mãos.

Sempre adorei andar na escola, mesmo naquela a que fui forçada a ir porque, apesar de ter sido tão difícil de frequentar, foi na Cancer School que aprendi mais e melhor. A escola que tanto me fez perder foi, incrivelmente, a que também mais me deu a ganhar. A que mais me marcou.

Mas não é sempre assim?

Marine Antunes

Cancer School. Turma de 2003

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