Eugénio de Andrade. O poeta que sonhava no arame

Eugénio de Andrade. O poeta que sonhava no arame


Foi o poeta mais lido, o mais imitado, talvez porque foi um dos melhores leitores, aquele cujo segredo era a rosa colhida louca, como um roubo, um rapto amante, a rosa que fere, essa que com cada espinho morde a mão que a aperta, e que a cada cicatriz a desenha, acaba por reinventar a mão


O encanto perdura para lá dos desastres próprios de cada época, sobrevive às afectações cínicas, às ênfases de tudo o que traz um necessário efeito de choque, virulência e absurdo, e que depois passa. O encanto envelhece com tudo, encrosta-se e enrija, faz-se uma presença concreta à luz do espírito. Depois da morte já faz parte da vida, não porque assenta, como depósito no fundo das sensações, mas participando da fermentação, esse júbilo das coisas, a face que de tão paciente se torna mais reconhecível, e ainda assim surpreende, num grau de idealismo, traduz o mundo e devolve-o à sua originalidade, esse eixo permanente que é uma forma de “estranha esperança”, como nota Fernando Pinto do Amaral no prefácio deste livro. “O filho pela mão, vamos por estas ruas/ esconjurando sombras, convocando/ dunas, potros, o sol ainda fresco,/ os cachorros latindo de alegria./ Meus olhos vão à frente farejando,/ enquanto a mão dele ilumina a minha.”

Como nos diz o verso final de um soneto de Luis Manuel Gaspar, “o funâmbulo dorme no arame: e sonha”. Assim, na poesia de Eugénio de Andrade tudo parece ameaçado, há um equilíbrio que nos fala de uma paz num contraste decisivo com as insaciáveis perspectivas do horror. Abstendo-se de quebrar o silêncio, contendo-se a um só passo do transbordo, as ilustrações do poeta são exemplarmente sedutoras tanto para um olhar imaturo quanto para aquele que os anos levaram à exaustão. “Não sejas como a névoa, nem quimera./ Demora-te, demora-te assim:/ faz do olhar/ tempo sem tempo, espaço/ limpo – do deserto ou do mar.”

Hoje todos querem dizer menos mas esquecem que isso obrigaria a que cada palavra tivesse a sua voz, como disse certa vez Sophia a propósito do seu esforço ao traduzir Hamlet. Mas dizer menos causando um arrepio aos do nosso tempo ainda pode significar muito pouco no tempo geral das coisas. Eugénio nunca assumiu o quanto os seus versos eram devedores do mais paciente exercício de leitura e tradução. Um que na sua “música tão amada” recolhia ecos, ia buscá-los e apurava-os criando supremas consonâncias. Reconhece na nota introdutória a “O Outro Nome da Terra” que salvou entre os seus versos a frase de um amigo, e depois disse não ter a certeza se existiam neste livro outras dívidas. Claramente mentia. Nestas coisas mente-se. O autor do maravilhoso volume de traduções “Trocar de Rosa” ganhou a própria mão de tanto a trazer ferida de apertar com espinhos e tudo a rosa dos outros. Isto não faz dele menos poeta. Só fará mais. A sua poesia serve de compêndio, um guia com um ouvido tão apurado que entrelaça pétalas de toda a raridade e serve na sua obra a “Rosa do Mundo”. “Primeiro orvalho sobre o rosto./ Que foi pétala a pétala lenço de soluços.// Obscena rosa. Repartida./ Amada./ Boca ferida, sopro de ninguém.”

 

Ano de edição ou reimpressão: 2016

Editor: Assírio & Alvim

Páginas: 88

Preço: 11€​

 

O NOME DA TERRA

Já sobre o meu peito não demoras
os pés miúdos, já a breve
dança dos dedos troca de cabelo,
porque tu cresces, cresces inclinado
para a difícil flor da nossa idade.
És agora o outro nome da terra,
ou simplesmente da eternidade.

 

COM AS MAÇÃS

As crianças chegam com as maçãs.
Vêm do sul,
os choupos brancos sabem o seu nome.
Também as gaivotas as conhecem:
aposto que foram elas,
estas ciganas das areias,
quem lhes mostrou o caminho.
Chegam com as maçãs:
as crianças, as abelhas.

 

OUTRA VEZ

Outra vez as mãos, meu deus, as mãos,
a porosa morada do verão,
o copo de água fresca como folha
de álamo,
o golpe de martelo
quebrando as hastes do silêncio.