Num misto entre a esquizofrenia e a euforia comemoram-se os 42 anos da Revolução de Abril, com aparentes mutações de discursos em função das posições relativas face ao poder e com supostas convergências com o poder em funções que não passam no teste do território. Por exemplo, o que é dito em Lisboa por alguns é o contrário do que é dito em Vila Franca de Xira pelas mesmas forças políticas. Daí que, apesar da aparente diáspora da forma de estar na política e na sociedade, estas estejam, na substância, onde sempre estiveram.
E depois há a esquizofrenia.
O Presidente da República, que já tinha convidado Draghi para uma reunião do Conselho de Estado, seu órgão de consulta, desconsidera na praça pública a opinião do Conselho das Finanças Públicas sobre o Programa de Estabilidade. O que conta é a opinião de Bruxelas. Os contribuintes pagam o Conselho das Finanças Públicas, que resulta de uma diretiva europeia, mas o que ele produz, no essencial, é irrelevante. A cada circunstância e dificuldade, uma geometria variável. Só faltou mesmo, em tempo de liberdade, o verbalizar do “Teodora, não vás ao sonoro” ou do “porque não te calas?”. Aliás, é fantástica a variação de uso pelos políticos dos dados e das posições do Instituto Nacional de Estatística, da Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República (UTAO) e do próprio Conselho das Finanças Públicas, consoante se está no poder ou na oposição.
O ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho saiu em defesa da liberdade de expressão do ex-primeiro-ministro José Sócrates, na sequência de um editorial de um órgão de comunicação social de apologia da autocensura, depois de uma crítica do ex-primeiro-ministro José Sócrates ao atual primeiro–ministro António Costa: “Nunca teria sido primeiro-ministro sem ter ganho as eleições.” Quarenta e dois anos depois de abril e de termos deixado para trás o lápis azul, um órgão de comunicação social defende a autocensura e os democratas das grandes proclamações em defesa das liberdades remeteram–se ao silêncio e à euforia do momento? Acabrunharam-se! A liberdade conquistada tem a amplitude de acolher um editorial a defender a autocensura do “porque não te calas?” e as notícias do governo em primeira mão que amiúde são publicadas, mas a primeira remete-nos para outros tempos.
As comemorações dos 42 anos da Revolução dos Cravos passaram, entre um certo ambiente de União Nacional e uma euforia pós-revolucionária, ambas com uma relevante dose de ilusão. A maturidade alcançada deve permitir vislumbrar as conquistas sólidas do caminho percorrido, combater a crescente perceção positiva do autoritarismo do Estado Novo – aumentou 2% numa década, segundo um estudo do Observatório da Qualidade da Democracia – e resgatar um conjunto de realidades que permanecem em quarentena ao fim destas quatro décadas de pulsar democrático.
A quarentena cívica expressa na falta de participação cívica e política, na falta de respeito com que alguns serviços do Estado tratam os cidadãos, como se fossem estatísticas ou meros números de processo, ou na falta de noção de que a cidadania implica direitos e deveres.
Quão confrangedora é a noção de cidadania dos que, aprisionados pela ganância e impulsionados pelo sentimento de impunidade da opacidade dos esquemas, consideram normal o recurso aos portos de abrigo que, aliviando a sua carteira, carregam com mais impostos os concidadãos! No caso vertente dos Panama Papers, depois de semanas a anunciar a presença de políticos, será higiénico que os nomes sejam divulgados e que não ocorra nenhuma depuração dos mesmos.
A quarentena social expressa numa sociedade que tem de voltar a estabilizar e a encontrar sustentabilidade para as funções do Estado e equilíbrio na regulação das órbitas de iniciativa privada, centradas na defesa do interesse nacional, na previsibilidade das opções e das políticas públicas e na atenção às novas realidades e dinâmicas sociais.
Os cidadãos e as comunidades têm de voltar a saber com o que podem contar. A verdade é que não é suportável continuar a pôr a mão em quem tem sido reiteradamente irresponsável, nem é responsável achar que é possível dar tudo a todos.
Sim, há quarentena quando milhares não têm oportunidades de afirmação pessoal, quando não conseguimos ter a malha que nos permita detetar e agir atempadamente perante as situações de risco para as crianças, a violência doméstica ou o abandono dos idosos.
Há quarentena à nossa volta na Europa e no mundo quando não há capacidade para agir perante a degradação dos padrões civilizacionais dos povos da Europa, o drama dos refugiados, a eclosão dos nacionalismos e dos populismos ou o terrorismo nas suas diversas expressões. Resgatar a Europa e o mundo da quarentena não se faz, ao contrário do que alguns defendem, com novas expressões do “orgulhosamente sós”, mas com a iniciativa e a mobilização de povos com realidades similares à nossa, a partir da credibilidade e sustentabilidade das opções de governação que fazemos.
Resgatar da quarentena boa parte da esperança de Abril é incompatível com medidas sem sustentabilidade, populismos no domínio do simbólico ou uma certa hipocrisia democrática dos discursos de geometria variável e da ilusão da mudança quando, no final, ganham os de sempre.
Membro da comissão política nacional do PS
Escreve à quinta-feira