Hoje estive a reler
Mário de Sá-Carneiro.
E senti o arrepio
de um quarto, só,
num hotel de Paris…
O suicídio
como único veículo
para um pensamento
melhor.
Porquê o desespero ?
“Um pouco mais de sol
eu era brasa
Um pouco mais de azul
eu era além…”
Por isso o desespero…
Escrevi este poema em 1975, quando, numa altura da vida em que furiosamente lia, escrevia, visitava exposições e ia a concertos, estudando assiduamente no bar da Gulbenkian porque o cheiro a Arte me estimulava os neurónios, me encontrei com a poesia de Mário de Sá-Carneiro, designadamente com o seu “Quási”.
Este poema, cujo primeiro verso (“Um pouco mais de azul”) foi depois título de um livro de Hubert Reeves, um autor canadiano que li mais tarde e cujas reflexões sobre o Cosmos – “Patiente dans l´Azur; l´évolution cosmique” -também muito me marcaram, deixa-me sempre uma sensação de vácuo, de limite, um profundo ex-libris do que é a condição humana e a angústia existencial, uma demonstração inequívoca de como somos minúsculos e o mundo enorme, ao contrário do que algumas vezes desejávamos ou até pensamos.
Órfão de mãe desde a mais tenra idade, criado com os avós em Camarate, onde curiosamente morreria nas condições estranhas que todos conhecemos um outro Sá-Carneiro, Mário foi sempre um insatisfeito, um inconformista, ou como escreveu António Variações, uma pessoa que “só está bem onde não está”.
Impulsionador do movimento modernista, um movimento artístico que incluiu pintura, escultura, literatura, poesia, design, teatro ou música, e que teve no seu seio personalidades como os pintores Picasso, Braque, Matisse, Mondrian, os arquitetos Walter Gropius (fundador da escola Bauhaus), Frank Lloyd Wright, Le Corbusier, escritores como T. S. Eliot, Baudelaire, Proust, Ezra Pound, Kafka ou Virginia Woolf, ou músicos como Schönberg ou Stravisnky e muitos outros artistas, em Portugal irrompeu como uma lufada de ar fresco, irreverente, sendo imediatamente combatido pelo status quo (que o movimento desafiava e punha em causa). Em consequência, a revista Orpheu, que era dirigida por Mário de Sá-Carneiro com o apoio de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, apenas publicou duas edições, pois para a terceira já não havia verbas – os autores e colaboradores foram alvo de escárnio e rejeição nos jornais e nos meios académicos portugueses, tradicionalistas e conservadores.
Sá-Carneiro já escrevia poesia aos 12 anos, e aos 15 traduzia o francês Vítor Hugo e aos 16 os alemães Goethe e Schiller. Iniciando o curso de direito em Coimbra, cedo se fartou dos rituais universitários e rumou para Paris, onde viveu uma vida de luxúria e boémia, mantendo correspondência, durante quatro anos, com Fernando Pessoa a quem, aliás, dirigiu a sua última carta, anunciando o suicídio programado, no Hôtel de Nice, na capital parisiense, ingerindo cinco frascos de uma mistura de arsénio e estricnina.
Ao amigo Pessoa, escreve: “Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída.” e acrescenta “ Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro”.
Vinte e cinco anos, vividos em permanente insatisfação, com toques de narcisismo e vitimização, procurando desesperadamente o “azul” mas consciente de lhe faltar o “pouco mais”, que entendia ser demasiado, para o atingir.
Morreu nesse dia 26 de Abril de 1916 – faz hoje precisamente 100 anos – e deixou as suas últimas vontades num poema (musicado pelos Trovante), intitulado “Fim”, em que manteve a ironia, a sensibilidade, a rebeldia e a determinação que punha na escrita mas que pareceu faltar-lhe no deasfio do quotidiano.
Quantos de nós não são diariamente consumidos por esta angústia existencial, sem saber apreciar a beleza do dia-a-dia e aceitar que mais do que o que não se pode ter ou fazer, há o que se tem e faz, e com o objetivo e fome de viver, mas com a esperança de que o ar brutal que se inspira se torne num sopro de vida que se expira e “contamina” os outros, tornando o mundo melhor e mais feliz.
Faz um século que morreu um homem que viveu apenas um quarto de século, mas que ainda hoje permanece vivo na memória de quem o lê, e que deveria ser ensinado nas escolas, para que os jovens saibam que o mundo não começou quando eles nasceram…
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!