Belerofonte entre as Quimeras

Belerofonte entre as Quimeras


Numa editora que tem composto um dos catálogos mais fortes no meio editorial português, é difícil compreender escolhas gráficas próprias de livros para vender nos aeroportos


O mercado editorial português proporcionou-nos, nos últimos tempos, uma agradável inquietação. A Relógio d’Água, contra a tendência de acumulação de catálogos e autores nos grandes grupos editoriais, tem-se assumido como a editora nacional de referência, tanto na área da ficção como da não ficção, não se limitando à resistência estóica que as pequenas editoras praticam contra os conglomerados editoriais. Longe de se reequacionar, especializar ou reduzir a escala, a Relógio d’Água manteve uma atitude e um catálogo próprios de uma editora com ambições maiores. Admitindo uma margem de erro, talvez não seja exagerado vaticinar que a postura da Relógio d’Água é apenas o preâmbulo de uma mudança saudável no mercado editorial contra a concentração cada vez mais expressiva num número irremediavelmente limitado de grupos.

Parte do destaque conseguido pela Relógio d’Água está na captura das duas coqueluches do universo editorial recente: Elena Ferrante e Karl Ove Knausgård. Contudo, não deixa de ser notável a forma como a editora conseguiu dar o palco próprio a estes autores sem manchar a sua reputação nos esquemas de promoção bolañescos típicos de um passado recente.

O planeamento futuro da editora é, também, animador. No próximo mês de Maio, para além da primeira edição em português da poesia reunida de um dos maiores vultos do século XX, T. S. Eliot, a Relógio d’Água vai publicar The Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker, um livro extraordinário que argumenta a favor de um decréscimo significativo da violência entre os homens nos últimos séculos e constrói, ao mesmo tempo, uma sólida e eficaz defesa do Estado moderno construído entre os múltiplos braços do monstro Leviathan e a estirpe weberiana do poder.

Mas é, acima de tudo, ao editor Francisco Vale que devemos esta Relógio d’Água que, nos parâmetros clássicos daquilo que é uma casa dedicada a fazer bem os seus livros, tem conseguido muito mais do que manter-se à tona. E, para lá de um editor que merece ser seguido, é também um editor que merece ser lido, principalmente na defesa das suas escolhas editoriais e, igualmente, dos seus tradutores quando estes são vítimas de ataques inoportunos por parte da crítica, como aconteceu no caso dos comentários de Pedro Mexia à tradução de Paul Celan.

Contra tudo isto, contra tudo o que de bom e contrário às lógicas mercantilistas a Relógio d’Água tem promovido, surgiu recentemente uma tradução portuguesa da obra de Patricia Highsmith que inspirou um dos melhores filmes do último ano: Carol, de Todd Haynes.

[Ler as primeiras páginas deste livro aqui.]

Acontece que este livro já tinha sido traduzido e publicado em Portugal com o título O Preço do Sal, fidelíssimo ao perfeito e significativo título original do segundo romance de Patricia Highsmith. O problema não está, contudo, na alteração do título, já que o mesmo aconteceu nas edições inglesas e bem antes do filme, apesar de ser indiscutível que o original é bem mais eficaz. O problema está numa estúpida e deliberada cedência às externalidades dos Óscares, colocando na capa os rostos das protagonistas do filme e, assim, subalternizando o livro à sua adaptação cinematográficas, ainda que, neste caso, a uma adaptação impactante.

Numa editora que, por exemplo, nos permite ler O Grande Gatsby sem ter de olhar para o rosto imberbe de Leonardo DiCaprio naquela paródia beyoncesca idealizada de Baz Luhrmann, não se compreende esta solução gráfica absurda, mercantilista e pouco digna de um livro.