Voltar a ler o direito criticamente


A dimensão crítica da leitura do direito e da justiça anda cada vez mais arredada das nossas preocupações e abre caminho a soluções problemáticas e perigosas do ponto de vista político e social


1. Há tempos fui confrontado, numa reunião de trabalho, com uma situação deveras perturbadora.

Destinava-se a reunião a permitir a coordenação entre investigações criminais que deveriam estar a ocorrer em diversos países e versavam sobre os mesmos factos ou factos conexos.

Apercebi-me, porém, de que no país que havia convocado a reunião e que mais afetado era pela atividade “irregular” que se queria investigar, os fatos ali ocorridos, ao contrário do que sucedia no nosso, não eram punidos por lei.

Nos outros, a forma como as respetivas autoridades haviam lidado com o problema assentara em pressupostos fácticos e jurídicos totalmente distintos dos que enquadravam a situação que, alegadamente, teria ocorrido no nosso país.

Tais divergências pareciam, contudo, não suscitar grandes problemas aos intervenientes na reunião, para os quais as nossas observações apareciam apenas como formalistas objeções, impedindo, maçadoramente, atingir os fins previamente determinados.

O sucedido despertou-me, muito vivamente, para o problema da diferente cultura jurídica e judiciária de muitos de nós.

2. Pelos jornais, tenho tomado conhecimento, entretanto, do imbróglio político e jurídico que envolve o processo de impeachment da presidente Dilma.

Aparentemente, do que me vou apercebendo, discute-se a utilização política de um mecanismo jurídico-constitucional, bem delimitado na lei, para uma situação com contornos distintos da previsão legal que o define.

Tal divergência de enquadramento legal dos factos apurados não terá, todavia, perturbado grandemente aqueles que procuram, através desse mecanismo jurídico, alegadamente inadequado à situação, atingir a finalidade política que se predispuseram a alcançar: a destituição da presidente.

3. As duas situações que relatei não podem senão conduzir-nos à acuidade da reflexão sobre o direito e o seu verdadeiro papel na sociedade.

Mais importante: à constatação da falta dessa reflexão, tanto nas análises políticas e jurídicas que abordam quotidianamente os muitos casos que vão sucedendo como também, a um nível mais erudito, nas nossas escolas de Direito.

A verdade é que a leitura crítica do direito e da justiça anda cada vez mais arredada das preocupações culturais dos europeus, o que, sem dúvida, abre caminho a soluções problemáticas e perigosas do ponto de vista político e social.

Recordemos a importância e delicadeza de algumas das medidas adotadas contra o terrorismo e as possíveis consequências das soluções “judiciárias” que alguns tratados de comércio internacional preveem.

4. Quase por acaso, no mesmo período, comecei a ler um pequeno estudo sobre propriedade e liberdade de um professor de Direito italiano, que ensina na Universidade da Califórnia e no International University College, em Turim, e de quem já aqui falei: chama-se Ugo Matei.

Embora não seja esse exatamente o tema da obra, Matei esforça-se aí por demonstrar como a visão estritamente positivista, neutra e aparentemente “científica” com que o direito é ensinado se reflete depois no desempenho dos nossos juristas práticos: magistrados e advogados.

Segundo ele, tal falta de perspetiva e aproximação crítica aos instrumentos jurídicos que devem usar impede muitos deles de se questionarem sobre a sua validade política e social e sobre os resultados que, através do seu uso, são afinal obtidos.

Tal falha permite, depois, uma descredibilização crescente do direito e da justiça e, como diz um programa cómico da nossa rádio, “isso não é bom”.

Jurista. Escreve à terça-feira

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A dimensão crítica da leitura do direito e da justiça anda cada vez mais arredada das nossas preocupações e abre caminho a soluções problemáticas e perigosas do ponto de vista político e social


1. Há tempos fui confrontado, numa reunião de trabalho, com uma situação deveras perturbadora.

Destinava-se a reunião a permitir a coordenação entre investigações criminais que deveriam estar a ocorrer em diversos países e versavam sobre os mesmos factos ou factos conexos.

Apercebi-me, porém, de que no país que havia convocado a reunião e que mais afetado era pela atividade “irregular” que se queria investigar, os fatos ali ocorridos, ao contrário do que sucedia no nosso, não eram punidos por lei.

Nos outros, a forma como as respetivas autoridades haviam lidado com o problema assentara em pressupostos fácticos e jurídicos totalmente distintos dos que enquadravam a situação que, alegadamente, teria ocorrido no nosso país.

Tais divergências pareciam, contudo, não suscitar grandes problemas aos intervenientes na reunião, para os quais as nossas observações apareciam apenas como formalistas objeções, impedindo, maçadoramente, atingir os fins previamente determinados.

O sucedido despertou-me, muito vivamente, para o problema da diferente cultura jurídica e judiciária de muitos de nós.

2. Pelos jornais, tenho tomado conhecimento, entretanto, do imbróglio político e jurídico que envolve o processo de impeachment da presidente Dilma.

Aparentemente, do que me vou apercebendo, discute-se a utilização política de um mecanismo jurídico-constitucional, bem delimitado na lei, para uma situação com contornos distintos da previsão legal que o define.

Tal divergência de enquadramento legal dos factos apurados não terá, todavia, perturbado grandemente aqueles que procuram, através desse mecanismo jurídico, alegadamente inadequado à situação, atingir a finalidade política que se predispuseram a alcançar: a destituição da presidente.

3. As duas situações que relatei não podem senão conduzir-nos à acuidade da reflexão sobre o direito e o seu verdadeiro papel na sociedade.

Mais importante: à constatação da falta dessa reflexão, tanto nas análises políticas e jurídicas que abordam quotidianamente os muitos casos que vão sucedendo como também, a um nível mais erudito, nas nossas escolas de Direito.

A verdade é que a leitura crítica do direito e da justiça anda cada vez mais arredada das preocupações culturais dos europeus, o que, sem dúvida, abre caminho a soluções problemáticas e perigosas do ponto de vista político e social.

Recordemos a importância e delicadeza de algumas das medidas adotadas contra o terrorismo e as possíveis consequências das soluções “judiciárias” que alguns tratados de comércio internacional preveem.

4. Quase por acaso, no mesmo período, comecei a ler um pequeno estudo sobre propriedade e liberdade de um professor de Direito italiano, que ensina na Universidade da Califórnia e no International University College, em Turim, e de quem já aqui falei: chama-se Ugo Matei.

Embora não seja esse exatamente o tema da obra, Matei esforça-se aí por demonstrar como a visão estritamente positivista, neutra e aparentemente “científica” com que o direito é ensinado se reflete depois no desempenho dos nossos juristas práticos: magistrados e advogados.

Segundo ele, tal falta de perspetiva e aproximação crítica aos instrumentos jurídicos que devem usar impede muitos deles de se questionarem sobre a sua validade política e social e sobre os resultados que, através do seu uso, são afinal obtidos.

Tal falha permite, depois, uma descredibilização crescente do direito e da justiça e, como diz um programa cómico da nossa rádio, “isso não é bom”.

Jurista. Escreve à terça-feira