“Desintoxicação” de ansiolíticos. Isenção de taxa moderadora para doentes em projeto inédito

“Desintoxicação” de ansiolíticos. Isenção de taxa moderadora para doentes em projeto inédito


Portugueses consomem quase 35 mil embalagens por dia. Cem doentes participam em projecto de desabituação


Lutar contra a dependência de medicamentos que fazem mais mal do que bem quando tomados por muito tempo como se faz com as drogas ilegais ou com o tabaco? O objectivo é esse. O Ministério da Saúde decretou ontem a isenção de taxas moderadoras para um grupo de doentes que vai participar num projeto inédito de desabituação de benzodiazepinas, o nome técnico dado aos medicamentos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos como o alprazolam (nome comercial Xanax). Vasco Maria, médico responsável pelo projeto promovido pela Faculdade de Medicina de Lisboa, alerta que há doentes a tomar estes medicamentos de forma continuada há mais de 30 anos quando por regra devem ser usados em tratamentos até 12 semanas. E o problema não é só causarem habituação: aumentam o risco de quedas, fraturas e, nos idosos, estão também ligados a défices cognitivos e demência.

O projeto inédito de desabituação de um grupo de medicamentos é promovido pelo Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Lisboa e deverá arrancar no próximo mês com uma centena de doentes seguidos no Agrupamento de Centros de Saúde de Lisboa Norte.

Ao longo dos próximos meses  passarão por consultas, psicoterapia e mudanças no receituários para tentarem passar a fazer um uso residual desta medicação ou deixarem mesmo de tomar os medicamentos que fazem parte do seu dia-a-dia há anos.

Não existe um esquema de desabituação definido, explica Vasco Maria. Contudo, há evidência de que este tipo de acompanhamento mais dirigido funciona. O médico lembra o caso de uma doente que chegou a tomar três ansiolíticos em simultâneo e, passados 20 anos, conseguiu passar a fazer uma toma esporádica e finalmente melhorar os problemas de sono e do foro intestinal. “Disse que se tinha libertado das drogas, o que mostra que os doentes também não se sentem bem com esta situação.”

Milhões de embalagens Segundo dados da consultora IMS Health fornecidos ao i, no ano passado os portugueses consumiram 12,5 milhões de embalagens destes medicamentos, o que dá quase 35 mil embalagens por dia. Só do alprazolam (Xanax), –  a molécula mais vendida –, são 3,3 milhões de embalagens por ano. Além disto, sucessivas análises têm apontado Portugal como um dos maiores consumidores a nível europeu.

Vasco Maria diz que apesar de não haver uma estimativa do número de embalagens consumidas a mais nem um protocolo de desabituação fechado, há algumas certezas: não chegam as consultas de rotina no médico de família e será preciso investir tempo e recursos nos problemas específicos destes doentes, que têm sintomas de ressaca como noutras dependências. E os ganhos serão financeiros mas acima de tudo sociais, com menos absentismo e até acidentes de viação.

O médico refere admite ainda que outras mudanças no sistema podiam contribuir para mudar o cenário em Portugal. “Muitas vezes os doentes compram estes medicamentos de receita obrigatória sem receita nas farmácias, o que para todos os efeitos é uma venda ilegal como acontece noutras áreas como antibióticos.”

Mas o problema, que envolve também os médicos, é mais complexo: “Queremos conhecer as motivações dos doentes e dos médicos que prescrevem, porque um médico perante um utilizador crónico, mesmo sabendo que a utilização deve ser de 12 semanas como dizem as normas clínicas, não pode de repente cortar a medicação e tem de continuar a prescrever. Tem de haver condições para o fazer.”

Alargar ao país No final do ano a equipa da Faculdade de Medicina de Lisboa pretende divulgar os primeiros resultados. Têm depois planos para seguir os doentes por mais um ano, para perceber se há recaídas. Vasco Maria admite que, se conseguirem um protocolo eficaz de desabituação, o projeto que conta com o apoio da Gulbenkian poderá ser alargado. Nesse caso, ter uma isenção de taxa moderadora para todos os doentes nas mesmas circunstâncias seria algo a equacionar, refere. “Da mesma forma que acontece noutros programas como a cessação tabágica.”

Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde disse ao i que, para já, este é um projeto autónomo mas a DGS irá acompanhar os resultados. “Se forem positivos, iremos pensar em aplicá-lo a nível nacional.” Não têm faltado propostas para reduzir o consumo em Portugal. A organização não-governamental EUTIMIA – Aliança Europeia Contra a Depressão em Portugal defende que estes medicamentos sejam descomparticipados e que as poupanças, estimadas em 20 milhões, sejam usadas para financiar tratamentos de desintoxicação e sensibilização.