Sol bom, mas pouco


Apesar de um sol primaveril que realça as cores, são muitas as questões que hoje emergem em letras pretas nos jornais.


1. No momento em que escrevo este texto faz sol aqui na Holanda.

Um sol radioso e raro que todos se apressam a gozar das mais variadas maneiras, e uma delas poderia convir a nós, portugueses: consiste numa invasão das esplanadas por bebedores de vinho.

Pena é que o nosso vinho esteja tão mal comercializado por aqui e os pobres holandeses sejam obrigados, por vezes, a beber autênticas zurrapas que nem o preço elevado consegue disfarçar. 

O súbito e brutal romper da primavera é, de facto, um espetáculo de cor e vida nova que a todos rejuvenesce um pouco. 
É como se as nossas preocupações, mesmo as mais pessoais e cáusticas, perdessem a força que lhes permitia afligir-nos e nos levava a fechar-nos sobre nós mesmos.
Olhando o sol, sentindo o seu calor nos braços e na cara, abrimos sorrisos que arrumámos quando o vento, o frio e a interminável chuva nos obrigaram a levantar golas que acabavam por guardar também as emoções e a simpatia. 
E, todavia, apesar do sol, das novas cores das coisas, os fatores que provocam essas e outras preocupações não deixam de existir e alguns, até, de se agravar.

2. A verdade é que, lendo o jornal na esplanada, nada nele me sossega.

São os Papéis do Panamá; a situação dos refugiados na Grécia e a incapacidade de com eles lidar com humanidade; o terrorismo no mundo e na mais próxima Bélgica, e sua provável extensão a outros países; os resultados indecifráveis do referendo sobre o acordo com a Ucrânia na Holanda e, pior, os comentários imediatos que se lhe seguiram, procurando desvalorizar o sentido dessa manifestação de vontade popular e aconselhando a não se ensaiarem mais consultas aos cidadãos; o imediato pânico sobre o que os ingleses venham a decidir relativamente à permanência do país na UE; as impercetíveis explicações sobre o processo do Banif em Portugal; os recados de Draghi; as estaladas que apenas se insinuam e afinal se sofrem, sei lá!

São muitas, de facto, as questões que hoje emergem em letras pretas nos jornais que leio.

Elas tentam impedir-me de gozar o raro sol e, na falta do nosso, o vinho argentino que – generosamente no que diz respeito à quantidade, que não no preço – a empregada da esplanada me serve, também ela entusiasmada com a possibilidade de já poder envergar uma T-shirt prenunciadora de um verão que, aqui, teima sempre em ser tímido.
Baralhado e com a atenção despertada por estímulos tão distintos, lá procuro concentrar-me num artigo sobre as propostas apresentadas para estreitar compatibilidades entre o exercício de funções políticas, públicas e privadas.
A verdade é que não consigo, pois apesar da evidente bondade das mesmas, tenho para mim – eu que profissionalmente lido todos os dias com os lados mais negros e artificiosos da vida social, política e económica – que a questão não pode ficar apenas pela criação de mais impedimentos pessoais.

A experiência diz-me que é pouco: será preciso, porventura, clarificar e controlar a distribuição de tarefas entre o setor público e o privado. 

Por muito que me digam o contrário, há funções que só quem delas não pretende retirar dividendos pode genuinamente desempenhar na prossecução do bem comum.

Enquanto não se delimitar muito rigorosamente o que cabe a uns e a outros fazer, de pouco servirá procurarmos condicionar os que, com justificações várias e sempre com muita habilidade, cirandam de um para outro setor.

Quanto ao vinho português, tenho uma certeza: a delimitação atual do setor que o produz não lhe afetou a qualidade, pelo contrário.

Jurista. Escreve à terça-feira 


Sol bom, mas pouco


Apesar de um sol primaveril que realça as cores, são muitas as questões que hoje emergem em letras pretas nos jornais.


1. No momento em que escrevo este texto faz sol aqui na Holanda.

Um sol radioso e raro que todos se apressam a gozar das mais variadas maneiras, e uma delas poderia convir a nós, portugueses: consiste numa invasão das esplanadas por bebedores de vinho.

Pena é que o nosso vinho esteja tão mal comercializado por aqui e os pobres holandeses sejam obrigados, por vezes, a beber autênticas zurrapas que nem o preço elevado consegue disfarçar. 

O súbito e brutal romper da primavera é, de facto, um espetáculo de cor e vida nova que a todos rejuvenesce um pouco. 
É como se as nossas preocupações, mesmo as mais pessoais e cáusticas, perdessem a força que lhes permitia afligir-nos e nos levava a fechar-nos sobre nós mesmos.
Olhando o sol, sentindo o seu calor nos braços e na cara, abrimos sorrisos que arrumámos quando o vento, o frio e a interminável chuva nos obrigaram a levantar golas que acabavam por guardar também as emoções e a simpatia. 
E, todavia, apesar do sol, das novas cores das coisas, os fatores que provocam essas e outras preocupações não deixam de existir e alguns, até, de se agravar.

2. A verdade é que, lendo o jornal na esplanada, nada nele me sossega.

São os Papéis do Panamá; a situação dos refugiados na Grécia e a incapacidade de com eles lidar com humanidade; o terrorismo no mundo e na mais próxima Bélgica, e sua provável extensão a outros países; os resultados indecifráveis do referendo sobre o acordo com a Ucrânia na Holanda e, pior, os comentários imediatos que se lhe seguiram, procurando desvalorizar o sentido dessa manifestação de vontade popular e aconselhando a não se ensaiarem mais consultas aos cidadãos; o imediato pânico sobre o que os ingleses venham a decidir relativamente à permanência do país na UE; as impercetíveis explicações sobre o processo do Banif em Portugal; os recados de Draghi; as estaladas que apenas se insinuam e afinal se sofrem, sei lá!

São muitas, de facto, as questões que hoje emergem em letras pretas nos jornais que leio.

Elas tentam impedir-me de gozar o raro sol e, na falta do nosso, o vinho argentino que – generosamente no que diz respeito à quantidade, que não no preço – a empregada da esplanada me serve, também ela entusiasmada com a possibilidade de já poder envergar uma T-shirt prenunciadora de um verão que, aqui, teima sempre em ser tímido.
Baralhado e com a atenção despertada por estímulos tão distintos, lá procuro concentrar-me num artigo sobre as propostas apresentadas para estreitar compatibilidades entre o exercício de funções políticas, públicas e privadas.
A verdade é que não consigo, pois apesar da evidente bondade das mesmas, tenho para mim – eu que profissionalmente lido todos os dias com os lados mais negros e artificiosos da vida social, política e económica – que a questão não pode ficar apenas pela criação de mais impedimentos pessoais.

A experiência diz-me que é pouco: será preciso, porventura, clarificar e controlar a distribuição de tarefas entre o setor público e o privado. 

Por muito que me digam o contrário, há funções que só quem delas não pretende retirar dividendos pode genuinamente desempenhar na prossecução do bem comum.

Enquanto não se delimitar muito rigorosamente o que cabe a uns e a outros fazer, de pouco servirá procurarmos condicionar os que, com justificações várias e sempre com muita habilidade, cirandam de um para outro setor.

Quanto ao vinho português, tenho uma certeza: a delimitação atual do setor que o produz não lhe afetou a qualidade, pelo contrário.

Jurista. Escreve à terça-feira