América, corpo a corpo

América, corpo a corpo


Numa carta ao filho, Ta-Nehisi Coates denuncia o racismo como um capricho norte-americano, sustentado pelo legado dos que acreditam serem brancos e pela violência sobre os corpos dos negros


Nietzsche disse-o com clareza: “Aquele que odeia ou despreza o sangue estranho ainda não é um indivíduo, mas uma espécie de protoplasma humano.” Quem odeia o ser humano diferente não é ainda (provavelmente, nunca será) uma pessoa tão irrepetível, segura e autónoma que seja capaz de não temer a mestiçagem. Vale a pena pensar nisto em relação às reações à atual pressão migratória sobre a Europa ou à escandalosa projeção de Donald Trump ou à resiliência da violência policial sobre os afro-americanos. O jornalista e escritor Ta-Nehisi Coates pensou-o na perspetiva autobiográfica da vítima, no século xx, nos EUA.

“Entre Mim e o Mundo”, recém-lançado pela nova editora Ítaca (dirigida por Isabel Castro Silva, tradutora de obras de Kafka e também deste livro), é uma carta do autor ao seu filho Samori, de 15 anos, sobre como “o progresso da América branca, ou antes, o progresso daqueles americanos que acreditam serem brancos [expressão de James Baldwin], se construiu com base no saque e na violência”, entre outros, dos negros. Prémio National Book 2015 para não ficção, livro do ano para grande parte da melhor imprensa norte-americana, assume-se como um libelo acusatório contra o racismo biologista, essa doença moral maligna que ainda hoje resiste ao progresso humano.

Antes de mais há o “terror puro da perda do corpo” sentido por Ta-Nehisi Coates (39 anos) desde a infância e a adolescência, passadas nos anos 1970 e 80 num bairro social de Baltimore ocidental (tratou-as primeiro no livro de memórias “The Beautiful Struggle”, de 2008). Devastador efeito do racismo sobre a vítima, o medo físico é também o combustível que inflama as subculturas de gangue, as leis das ruas (“Yeah nigger, e agora?”), a histeria da violência doméstica (o pai dizia: “Ou lhe bato eu ou lhe bate a polícia.”). A primeira originalidade do discurso de Coates é este enfoque na dimensão física da lógica de exclusão social. A nudez real do corpo negro exposto à violência durante 250 anos é o reverso do “sonho” americano: um mundo “suburbano e infinito, organizado em torno de carne estufada, tartes de mirtilo, fogos–de-artifício, gelados, casas de banho imaculadas e pequenos camiões de brincar empurrados em jardins nas traseiras”.

Coates explica que foi na figura de Malcolm X e nos livros (o pai dele, veterano do Vietname, ex-Pantera Negra, era bibliotecário investigador), sobretudo sobre história e cultura negras, que começou o seu despertar de consciência, depois traduzido na entrega abnegada ao estudo e à leitura na Howard University. Admite que o tempo do filho a quem se dirige já é muito diferente daquele que relata, mas insiste na memória como “porto de abrigo na tempestade americana”. Defende a busca não de um sonho negro (rival do “sonho” da civilização branca, uma resposta absurda à questão absurda: qual é o Tolstoi dos negros?), mas de um poder negro (uma verdadeira consciência de si, ainda que “o sangue negro não tenha nenhum significado intrínseco”). 

“Entre Mim e o Mundo” é um livro de denúncia da arbitrariedade assassina da violência policial sobre os negros, da impenetrabilidade e indiferença do mundo dos que acreditam serem brancos. Ou, como diz Coates ao filho: de como “a narrativa inteira [da América] argumenta contra a verdade de quem tu és”.