Na voragem das notícias ao minuto, das indignações cidadãs lambendo microfones estendidos, dos soundbites dos representantes televisionados dos representantes políticos, da carnificina ortográfica das caixas de comentários, do imediatismo da cultura idiotovisual, sobra pouco de tempo, de vontade e de esforço para a reflexão.
A semana foi pródiga em notícias sobre a corrupção, quer à escala planetária, quer à escala nacional. Permitam-me gastar algum tempo com a segunda. Penso na recente prisão de dois altos quadros da Polícia Judiciária (PJ). Ainda que um dos detidos estivesse aposentado, em Portugal seguimos a tradição francesa: a função adere ao titular e não é a cessação da mesma que a afasta, chega-se a inspetor, morre-se inspetor.
Para quem não sabe, aqui vai a explicação: a investigação criminal digna desse nome, a investigação de crimes complexos, organizados, sofisticados, seja em matéria de banditismo (os assaltos a bancos como todos os conhecem na versão hollywoodesca), de terrorismo, de tráfico de estupefacientes, de crimes económicos (aí se incluindo a corrupção), de crimes contra as pessoas, é feita em Portugal pela PJ. E é, mesmo numa conjuntura de enorme escassez de meios e de retração dos vencimentos (não só o vencimento de base, que é francamente baixo para a complexidade e a responsabilidade das funções exercidas, mas sobretudo das horas extraordinárias e dos vários suplementos que sempre fizeram parte da folha salarial), particularmente bem feita. As acusações “mediáticas” que fazem as primeiras páginas dos jornais e a abertura dos telejornais não caem do céu, resultam do trabalho dos investigadores e técnicos da PJ.
Num país em que as instituições são fracas e em que facilmente se celebra o esforço individual como excecional face à mediocridade do “sistema”, a PJ é uma ilha de qualidade. Uma ilha que mantém uma cultura ímpar de competência e de dedicação. O que veio a lume esta semana em nada afeta esta constatação. Foi esta mesma cultura que permitiu à instituição investigar os dois suspeitos e fornecer as provas suficientes para a sua constituição como arguidos.
As tentativas de esvaziar as competências da PJ são antigas e têm duas fontes conhecidas: as lutas corporativas e a vontade de ocupar o Estado. As primeiras costumam andar de par com a ideia de fusão das forças policiais, esquecendo-se de referir que a fusão nas organizações sociais dá origem a uma organização baseada no mínimo denominador comum. A investigação criminal passaria a esgotar-se na elaborada frase “faculta-me os seus documentos, ó faxavor?”. As segundas, que podem facilmente conviver com as primeiras, pretendem há muito acabar com a possibilidade de serem investigadas as atividades criminosas mais complexas, complexidade que, como facilmente se imagina, custa dinheiro e não está acessível aos pilha-galinhas.
Num mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, pela sofisticação dos fluxos financeiros e comunicacionais, alguém acha que nos podemos dar ao luxo de asfixiar ou de dissolver uma polícia criminal competente e especializada?
A presunção de inteligência não resulta da lei. E muito menos é espontânea. Dá trabalho, muito trabalho e requer o trabalho de muitos. Sugiro a inclusão na declaração de IRS de mais um quadro para se incluir o NIF do serviço da administração pública para o qual queremos que reverta 1% do imposto liquidado. No que me diz respeito, não tenho dúvidas quanto ao preenchimento.