A avó tinha sempre rebuçados, espalhados no enorme bolso do avental, prontos para curar qualquer crise. Quando a menina chorava, quando a menina não queria dormir, quando tinham enterrado o cão da menina, a avó tinha ali o rebuçado na mão e o sorriso na outra e estendia-os à sua menina, numa generosidade sem igual. Aquele rebuçado de sabor a laranja, comido sempre no meio de lágrimas e soluços, sabia a laranja e a mimo, a colo e a esperança, e chegava sempre estendido pela mão da avó, que tinha a solução sempre ali, no avental.
Queridos carequinhas, sobreviventes e pessoas sem cancro, mas cuja alma às vezes sangra como se tivesse tumores – e se vos dissesse que é mais simples do que parece? E se vos dissesse que nós também temos aqui, aqui na mão, na minha mão, na vossa mão, as maravilhas disponíveis, tão prontas como os rebuçados sempre prontos no avental da avó?
Bem sei que não vos apetece ouvir balelas. Bem sei que agora só vos apraz dizer: “Cala-te, Marine, é fácil falar, mas é tão difícil fazer.”
Não posso discordar mais. É tão mais difícil continuar a manter o velho hábito de não tentar ser melhor. É tão mais difícil se não buscarmos aqui, nas nossas mãos, nas vossas mãos, as nossas pequeninas soluções que podem ser tão eficazes e tão prontas como o rebuçado sempre pronto da avó. Eu sei que os outros têm soluções maiores, eu sei que os outros parecem uns caraças de uns gurus e que nunca são destabilizados nem frágeis, eu sei que os outros são mais capazes, mais calmos, com vidas mais fáceis, eu sei que os outros leem melhores livros, têm mais tempo disponível, eu sei que os outros, aos nossos olhos, têm sempre mais hipótese do que nós de conseguirem a tão desejada paz. Porque eles são os outros, e nós somos apenas e sempre nós. Mas lembrem-se da avó. Tão simples e tão eficaz, com a cura dos seus rebuçados de sabor a laranja. E eu quero achar que nós podemos ter os nossos próprios rebuçados.
Digo-vos que vivi a fase mais difícil mas também mais rica da minha vida quando a vida nos disse, a nós, dois putos apaixonados, que o tempo aqui estava a acabar. Nessa fase de profunda entrega e aprendizagem precisei de paz como nunca tinha precisado, mas essa paz parecia que se tinha chateado connosco e que não nos poderia visitar. Não tínhamos grandes soluções. Não tínhamos experiência de vida, não éramos gurus, não sabíamos mais que o necessário, éramos apenas e sempre nós – uns putos cheios de medo. A cura dele não vinha, a vida avançava ao mesmo tempo que a doença, mas ainda queríamos a nossa paz. Ainda achávamos que a merecíamos, ainda a desejávamos mais que a própria cura. E foi aqui que percebemos que teríamos de criar os nossos próprios rebuçados. Teria de haver algo mais doce, mais bonito, que saísse quando fosse mais urgente, que saísse de nós e nos acalmasse o choro, que saísse de nós e nos colocasse um sorriso na cara.
Era a gratidão. Os nossos rebuçados seriam feitos de gratidão. Essa seria a nossa solução pequenina que cabia numa mão e estaria ali, sempre pronta, à disposição de quem precisa tanto. Começámos por exercitar a gratidão, infantilmente, como se fosse um músculo. Nomeávamos sempre, sempre, ao fim do dia, as coisas boas que nos tinham acontecido, mesmo que, aparentemente, elas não tivessem existido. Era um jogo e tínhamos de as encontrar. Tínhamos de ver magia nos nossos dias. Depois passámos a ter cuidado com as palavras. As palavras negativas teriam de ser revistas, repensadas, porque os nossos rebuçados teriam de saber a leveza e a beleza, como as palavras positivas, que caem sempre tão bem. Finalmente, e apesar de ser mais difícil, passámos a cuidar dos nossos pensamentos – sempre tão velozes e tão feios, dizem–nos coisas que nos derrubam mais que as próprias ações e vêm sempre carregados de medo. Analisávamos os pensamentos e tentávamos mudar-lhes o tom, a cor, fazendo com que não ocupassem todo o espaço dentro de nós. Ficávamos sempre mais leves, depois.
E o tempo passou. Para ele, transformou-se em plenitude; para mim, o tempo ainda é este tempo terreno, porque ainda estou viva. E hoje olho para os nossos rebuçados, que nos adoçaram os dias, e percebo que ficaram comigo. Ele deixou-os comigo. Mantenho a gratidão, as palavras e os pensamentos positivos no meu bolso, na minha alma, na minha mala, para que me sirvam sempre que me dói mais. Para que me sirvam … para tudo. Acho que os uso para tudo. Os rebuçados não foram em vão. Acalmaram aqueles dias de luta e acalmam estes, dão sentido a estes, que são outra luta, para os que cá ficam.
Sempre que isto tudo me parece mais feio, busco, ansiosa, os meus rebuçados, que estão sempre espalhados na minha alma confusa, como se fosse a minha mala desarrumada. Nervosa, nunca os encontro à primeira e viro a mala ao contrário, já desesperada. E depois, sempre, sempre que penso que não os vou encontrar … voilà, descubro, lá no fundo da mala, o meu rebuçado perdido, que dá outra vez magia a isto.
Blogger
Escreve à quinta-feira