Para quem deixou a política ativa nas legislativas, há cinco meses, a primeira pergunta pode ser ‘o que é feito de si’?
(risos) Estou a fazer um doutoramento sobre ‘concepções de cidade democrática no pós-25 de Abril’. Interessa-me a dinâmica a que se assistiu no final dos anos 70, da criação de territórios metropolitanos, foi uma transformação estrutural no país. Estou a estudar os concelhos periféricos a Lisboa, aonde acorre o povo do espaço rural e onde as maiores carências se fazem sentir. Tento perceber o que o regime, e em particular o poder local – naquela década um pouco esquecida entre 76 e 86, antes de inventarmos a Europa – fazem na construção da cidade democrática. E o que significa isso em termos de assegurar direitos sociais, responder a uma vontade de participação. Da estruturação do poder local com o poder central, que é determinante, dada a tradição centralista que existe em Portugal. É isso que me interessa perceber. E há outra dimensão que acho particularmente interessante.
Qual?
É que Lisboa tem à semelhança de Paris uma experiência de governação muito forte do PCP. Nós temos a ‘cintura vermelha’, os municípios em torno de Lisboa que têm uma preponderância forte do PCP. E a maior parte dos estudos sobre os partidos comunistas do Ocidente tendem a incidir sobre o conflito em torno da guerra fria, sobre a política nacional – o que eles desejariam ser em termos de governo nacional – e nunca olham para o que os partidos comunistas no Ocidente fizeram, que foi governar áreas metropolitanas durante décadas a fio. Em Itália isto durou 40-50 anos, em França 30 anos. E em Portugal, a presença do PCP na área metropolitana também é muito importante. Perceber como se estrutura uma força que é anti-sistémica, como é que responde às necessidades de uma população carenciada em termos de equipamentos e de acesso a direitos sociais, exactamente no período em que se está a construir o regime e se está a definir qual é o perfil do regime democrático português. Acho isso particularmente apaixonante.
Pode antecipar algumas conclusões?
(risos) Não, ainda estou a meio do percurso. Vou entregar a tese daqui a um ano e meio, dois anos.
Quando começou?
Há dois anos.
Tem dois filhos, com sete e cinco anos de idade. Tem sido complicado conciliar a política e a maternidade?
Foi complicado. Houve uma altura no Parlamento que sentia que estava sempre a dever qualquer coisa, ou estava a dever ao espaço familiar ou ao Bloco. Parecia que o tempo não dava para tudo.
A Ana Drago ainda é uma política no activo? O Tempo de Avançar acabou.
O Tempo de Avançar foi um movimento de cidadãos que se estruturou para uma candidatura à Assembleia da República. Não tendo conseguido ter êxito, esse movimento perdeu o seu objectivo e portanto terminou. Eu sempre fiz um jogo psicológico comigo própria em que assumi que não pertencia a uma classe política profissionalizada. Aliás isso começou a inquietar-me à medida que ia começando a ficar durante muito tempo no Parlamento.
Porque é que não a vimos mais nesta última campanha eleitoral, pelo Livre/Tempo de Avançar? Foi culpa dos media?
Não nego que em termos pessoais comecei a sentir algum cansaço com essa maior exposição, ou essa maior responsabilidade. E depois, creio que uma das falhas do movimento Tempo de Avançar foi alguma incapacidade de se colocar nos media com o grau de visibilidade que iria necessitar para levar avante o seu programa político e os seus objectivos. E eu acho que foi uma conjugação das duas coisas. Mas foi uma candidatura extremamente interessante que juntou de uma forma muito orgânica e muito espontânea, com enorme entusiasmo, muita gente disponível para assumir participação cívica. Eu assumi responsabilidades nesse processo e não fui capaz de fazer com que ele desse todos os frutos que eu acho que podia dar à política portuguesa.
Completou 40 anos de idade. Sente-se já uma senadora da política?
(risos) Tenho 40 anos, sou bolseira de investigação de doutoramento e portanto estou numa situação de precariedade, não sei o que vai ser o meu futuro dentro de dois anos. De alguma forma é como sempre se estivesse sempre a começar a vida. Não me sinto nada senhora (risos). Sinto-me sempre a tentar esgravatar a vida para a frente. Não, não me sinto senadora.
Mas vamos vê-la como comentadora.
Eu confesso que tenho a pretensão, certa ou errada (risos), de achar que há um conjunto de coisas que devem ser ditas – sobre o contexto político nacional e internacional, os problemas que temos, desafios – e que gosto de o fazer com diversidade, ou seja no espaço público. Por vezes não me satisfaço apenas com uma conversa entre amigos. Por educação, experiência de vida, acho que participar é assumir responsabilidades. Portanto, sim, tentarei dizer de minha justiça, com as minhas forças e fraquezas e com os erros que já cometi, as coisas em que estive certa.
Vai ter um espaço de comentário numa televisão?
Sim. Vamos ver se as coisas acontecem (risos)
Falou dos erros que cometeu. Tende a flagelar-se pelo que correu mal?
Não. A maior parte das decisões que eu tomo são extremamente maturadas. Tomo-as avaliando todos os cenários, é uma espécie de jogo de xadrez. Agora, acho é que é preciso tomar decisões, não basta a gente arrastar-se por inércia ou pondo apenas uma certa má vontade nas coisas e nos sítios.
Voltando ao Tempo de Avançar. Na précampanha para as legislativas, a 11 de Julho, a Lusa fez uma notícia, com o seguinte ‘lead’: “A dirigente do Livre/Tempo de Avançar Ana Drago defendeu neste sábado que os portugueses estão “fartos” de um Governo que se “ajoelha” em Bruxelas, das “meias palavras” do PS e do sectarismo existente nas forças mais à esquerda”. Tendo em conta o que aconteceu depois das eleições, qual é o seu sentimento? Grita ‘Vitória!’?
(gargalhada) Eu creio que sim, ou seja, eu hoje vivo um momento de bastante esperança política. Há um ano, se alguém colocasse essa hipótese de entendimento para a sustentação de um governo que no meio de todas as dificuldades tente defender o país, sustentado pelas forças políticas à esquerda seria acusado de irrealista. O Movimento Tempo de Avançar fez essa proposta política difícil, porque colocava uma estratégia política fundamental para o país, em parte, nas mãos de outros atores políticos que não nós próprios.
‘Irrealistas’ era a acusação que vos era feita?
Era, por parte dos que não se entretinham a fazer acusações de traição. Quem fazia este debate de boa fé dizia ‘jamais o PS estará interessado – até por causa dos seus anteriores compromissos na Europa, daquilo que era o seu passado – em fazer uma articulação com os partidos à esquerda. E o PCP e BE, pela sua tradição, pela sua cultura politica, e até porque disputam um espaço político que em parte se justapõe, jamais darão esse passo.
Mas deram.
No Tempo de Avançar, juntou-se um conjunto de pessoas que tinha aquela sensação de urgência. ‘É preciso no meio de todas as dificuldades que conhecemos, encontrar um programa mínimo que neste momento consiga defender a vida das pessoas contra uma estratégia de ajuste de contas com o 25 de Abril e com a configuração do regime democrático em Portugal, tendo como pilar central o Estado Social e eu acho que esse discurso de alguma forma permitiu desequilibrar esse jogo de bloqueios à esquerda. Portanto, sim, sinto-me esperançosa, agora.
E sente ter contribuído para isso?
Isso é difícil, na verdade. Isso foi feito por outras pessoas que não as do Tempo de Avançar. Portanto, o mérito está com elas.
E não tem a sensação de que se tivesse sido um pouco mais paciente no Bloco teria participado nisto?
É sempre difícil fazer História contrafactual. Na altura em que a Manifesto. (a associação política a que pertencia) saiu do Bloco [em Julho de 2014] nós estávamos a caminhar para uma convenção que assumiu muito claramente que um diálogo com o PS era trabalhar sobre uma ilusão, uma falta de realismo. Se eu ficasse na altura dentro do Bloco, dizendo que uma frente de esquerda era fundamental, não sei se não teria criado mais dificuldades, não sei se não teria tido o efeito contrário. Ou seja, não permitiria que isto agora acontecesse.
Isso dá que pensar…
Ter uma oposição dentro do Bloco que dissesse ‘nós temos de ter a capacidade de nos entender com o PS e o PCP para encontrar uma plataforma que defender a vida das pessoas’ e essa posição ser expressa em convenção como minoritária, como seria na altura, isso podia ser um impedimento.
A Ana Drago votava neste Bloco de Esquerda, o que fez o acordo com o PS?
Já tenho pensado nisso, agora que sou uma pessoa sem partido, e creio que sim. O meu problema com o Bloco na altura não era um problema de programa político, das ideias fundamentais, era um problema de estratégia e de urgência dessa alteração estratégica. Aquilo que tem sido feito nos últimos tempos tem a minha concordância e a minha esperança.
Porque não volta ao Bloco? É por uma questão de orgulho?
Não exactamente. Eu não tenho aquele discurso de ‘partidos nunca mais’. Mas eu comecei no activismo politico há 20 anos em Coimbra, lia na altura o livro do Boaventura de Sousa Santos “Pela Mão de Alice”, que tem sobre o sistema político português algumas frases que dizem que a associação dos partidos políticos à instauração do regime democrático em Portugal dotou os partidos de um capital simbólico muito forte. Ao mesmo tempo que nós temos uma tradição de esmagamento das organizações sociais e cívicas durante o fascismo que nunca lhes permitiu ter vitórias e capacidade de crescimento. E isso significa que os movimentos de cidadania que emergem em Portugal muito rapidamente tem as lideranças cooptadas pelos partidos políticos. Eu comecei o meu activismo no movimento estudantil e depois na questão do referendo do aborto nos anos 90. E é verdade, as lideranças que emergiram nesses contextos foram rapidamente cooptadas pelos partidos e eu acho que isso é uma fraqueza em Portugal.
Continua a fazer parte da associação Manifesto.
Eu creio que a Manifesto tem hoje um conjunto de pessoas, de vontades e de dinâmicas que permitem estruturar uma associação cívica com intervenção politica que não esteja imediatamente dirigida para o campo partidário e da representação eleitoral directa. E eu acho que esse é um projecto que vale a pena em Portugal.
Porquê?
Há um conjunto de debates políticos que são muito mais difíceis de fazer hoje entre os partidos. Deve haver na sociedade civil organizações, pessoas, espaços que permitem fazer esses mesmos debates com um grau maior de liberdade.
Isso é uma espécie de SEDES?
Talvez (risos). Não a SEDES, mas uma coisa um bocadinho diferente. É preciso estruturar programas nas áreas que são fundamentais e eu creio que esse capital humano está disponível hoje e acho que a Manifesto conta com um conjunto assinalável de pessoas que têm dado contributos para esse debate: José Maria Castro Caldas, Ricardo Paes Mamede, Nuno Teles, João Rodrigues, José Vítor Malheiros, Isabel do Carmo, Henrique de Sousa. Quer dizer, um conjunto de pessoas que têm pensamento e capacidade de o fazer.
A Manifesto tem actividade?
Sim. Vai fazer uma Assembleia Geral a 17 de Abril, onde vai estruturar um plano de actividades virado para essa dinâmica cidadã, participativa, de debates. Think tank é um termo um bocadinho pretensioso. É uma associação cívica (risos), é isso que é fundamental agora fazer.
Gostava neste momento de estar na Assembleia da República, como deputada, a devolver rendimentos e direitos aos portugueses (usando uma expressão desta nova maioria)?
Vou fazer uma confissão. Eu fui profundamente infeliz nos últimos anos que estive na Assembleia da República. Foi um processo muito difícil, creio que, obviamente, pelo grau de violência que estava a ser aplicado na sociedade portuguesa na altura e por eu ter uma sensação de absoluta impotência.
De que período nos está a falar?
2011-2013. A troika, Passos Coelho, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque em todo o seu esplendor (risos), Carlos Moedas. Eu saí em Setembro de 2013 e, como dizia há pouco, sempre fiz uma espécie de jogo psicológico comigo própria de que estar na Assembleia da República era uma espécie de tempo de missão. E portanto, eu não queria se aquilo. Ficar… (risos) e talvez até a aproximação dos 40 anos. Ficar para além dos 40 num percurso muito longo como deputada, iniciado aos 26-27, significava estar-me a condenar a uma carreira de política profissional que eu não queria ser. Eu achava que a minha liberdade, a minha combatividade nascia de ter sempre a percepção de que ali há um tempo que se está a fazer uma coisa. E portanto, continuar ano após ano a gastar horas infindáveis em comissões parlamentares, em debates por vezes absolutamente lamentáveis era uma coisa que me começava a criar dificuldades em termos da minha auto-percepção. E portanto, eu acho que é fundamental o trabalho que está a ser feito hoje na AR, – exactamente (risos) – tendente a criar novas formas de sustentar o Estado Social, devolver rendimento aos portugueses, sustentar um conjunto de políticas. Na verdade, acho que há outros que o estão a fazer dentro dos possíveis, com riscos, problemas, com certeza, mas não me sinto necessária.
Quando viu os acordos com o PS assinados, o que lhe passou pela cabeça? Ficou comovida?
Fiquei, devo dizer que fiquei. Passaram agora alguns meses mas não nos devemos esquecer quão difícil foi ultrapassar aquilo que no Tempo de Avançar chamávamos o muro de cimento que se construiu entre o PS e a esquerda parlamentar. E portanto, o quão complicado foi nos processos internos dos vários partidos conseguir isto e o quão importante é, para dar uma esperança ao país. É preciso tratar isto tudo com cuidado.
E ligou a alguém? Ligou a Francisco Louçã ou a Catarina Martins? Teve essa vontade?
Não (risos). Acho quer era pretensioso fazê-lo.
Na esquerda há uma certa tradição de quando alguém sai de um partido se quebrarem os laços não só políticos como pessoais. Teve essa sensação de perda?
Não, não tenho. É óbvio que os processos de ruptura política, para quem traz no estômago e no coração as suas causas, são sempre processos dolorosos. Mas há um conjunto de pessoas com as quais eu tenho relações pessoais, de amizade, de carinho, de proximidade que se mantêm. Portanto, as pessoas concordam em discordar, não é?
A Ana Drago, há uns dez anos era vista como o futuro do Bloco. Mariana Mortágua aparece agora nessa posição. Revê-se nela e nesta geração de mulheres que está à frente do seu ex-partido?
Acho curioso olhar para uma politica de quadros que foi uma escolha deliberada do BE de trazer para a política jovens mulheres que demonstravam ter capacidades e competências para serem das principais figuras no confronto político e que teve resultados assinaláveis. Hoje, a geração de protagonistas que o Bloco tem é uma geração de mulheres a partir exactamente dessa escolha de trazer mulheres para a ribalta.
Vê na Mariana Mortágua capacidades excepcionais?
Eu conheci a Mariana quando ela era assessora do grupo parlamentar do BE. Ela assessorou-a. Na comissão dos swaps ela trabalhou comigo, e em algumas matérias da comissão de economia onde eu estive durante um breve período. A Mariana demonstrava excelentes qualidades de iniciativa, combatividade, de pensamento articulado. Creio que ela está a mostrar essas qualidades agora como deputada do BE.
Mantém contacto com Francisco Louçã?
Uma relação normal. Temos as nossas concordâncias e as nossas discordâncias.
O novo governo de esquerda já passou os 100 dias da ‘geringonça’ – não sei se a incomoda a expressão?
Não incomoda, mas acho-a (risos ) um bocadinho tonta.
O que foi o melhor que este Governo fez?
A percepção de que é necessário inverter uma política de restrição do Estado Social e que isso é estruturante na dinâmica económica e na própria dinâmica política da sociedade portuguesa. Portanto, perceber que fazer um combate à pobreza, tentar elevar os rendimentos das camadas que têm níveis salariais mais baixos, restruturar serviços públicos que prestam serviços directos a essas camadas, no campo da educação e no campo da saúde, é determinante para manter a coesão social e a dignidade ao nível da cidadania em Portugal. Apesar de todas as dificuldades orçamentais isso parece-me o esforço mais assinalável e mais esperançoso por parte do Governo do PS.
Temos um novo Presidente da República. Marcelo puxa o governo para o Bloco Central?
Acho que fará esse esforço. Acho que é esse o seu papel, é para isso que foi eleito, por quem foi eleito. Para esperar que Passos Coelho se vá embora e promover um acordo de Bloco Central para o futuro.
Marcelo é perigoso pela sua capacidade de sedução?
Creio que sim. Acho que é isso mesmo.
António Costa, pelo que já fez, tem lugar no grupo das primeiras figuras da democracia?
Creio que sim.
Era imperdoável que a esquerda não se unisse em torno de Fernando Medina, em Lisboa, nas autárquicas de 2017?
Creio que isso era o desejável. Vamos ver se os diferentes protagonistas se conseguem entender. A câmara de Lisboa, em matéria de urbanismo, não em sido propriamente um expoente de defesa do programa político da esquerda. A cidade tem de ter diferentes tipos de pessoas, diferentes classes, e Lisboa está a ser limpa pelo mercado imobiliário, pelo negócio do turismo. Se Fernando Medina entender que Manuel Salgado a figura principal na área do urbanismo eu creio que esse diálogo será mais difícil
Assunção Cristas é uma séria adversária para Medina?
Do ponto de vista de popularidade e capacidade comunicacional, a Assunção Cristas é uma adversária a ter em conta. Não consigo é vislumbrar qual é o programa da direita para Lisboa, nunca consegui, creio mesmo que não existiu. Não há memória de haver uma ideia politica de direita para Lisboa.
Cristas, no CDS, recentra o partido. Que efeito isso pode ter na política portuguesa?
Cristas é uma espécie de continuação por outros meios da politica de Paulo Portas. Não há grandes diferenças, é uma sequela de Portas.