Um governo de esquerda reformista que respondia à resistência da oposição com demonstrações de poder na rua. Uma direita conservadora, com capacidade de mobilização popular igualmente poderosa, assustada com a perspetiva de um regime comunista em plena Guerra Fria. Qualquer semelhança com a atualidade é pura coincidência – este era o Brasil em março de 1964, há 52 anos. Pelo menos até ao último dia do mês, data em que um golpe militar colocou um ponto final nas reformas de João Goulart.
Perante um cenário de iminente luta de classes, Jango – como era conhecido o presidente que em três anos de poder impulsionara uma reforma agrária, promovera nacionalizações e prometera legalizar o Partido Comunista Brasileiro – decidiu não resistir mais. No segundo dia de abril já estava exilado no Uruguai, onde ficaria até ser sepultado no seu país, em 1976.
Saberia que, sem sangue, não voltava a derrotar os militares como fizera em outubro de 1961, quando – a partir do Uruguai – manobrou politicamente a “campanha da legalidade”, que contrariou a vontade dos generais obrigando-os a dar posse ao vice-presidente face à renúncia do então mandatário, Jânio Quadros.
Tinha então início uma era de ditadura militar que se prolongaria durante 21 anos, até 1985. Bastaram poucos dias para se perceber o que aí vinha: ainda durante o mês de abril, os deputados da oposição perderam os seus mandatos, funcionários públicos civis e militares foram afastados, líderes sindicais foram detidos – Gregório Bezerra, o dirigente comunista, foi “amarrado e arrastado pelas ruas de Recife”, segundo relato do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil (CPDOC).
Bipartidarismo sem greves O primeiro militar a assumir o poder foi o marechal Castello Branco, que logo tratou de dissolver os partidos políticos para instalar o bipartidarismo no país – a Aliança Renovadora Nacional (Arena), controlada pelos militares, e a oposição tolerada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Ainda nesta fase, o Congresso Nacional foi encerrado e foi aprovada uma nova Constituição que legitimou os poderes excecionais do regime. As greves foram proibidas e os salários passaram a ser controlados pelo Estado.
Em Washington, naturalmente, suspirava-se de alívio face à certeza de que o Brasil não se tornaria numa gigante Cuba. Mas não só: segundo o CPDOC, “o golpe militar foi saudado por importantes setores da sociedade brasileira”, com a Igreja Católica, os proprietários rurais e a nata empresarial à cabeça.
Castello Branco teria a ideia de devolver o poder à sociedade uma vez afastado o espetro comunista, mas a ala dura dos militares impôs para a sua sucessão outro marechal. A partir de 1967, Arthur Costa e Silva começa a sentir os efeitos da reorganização das oposições, com greves a desafiarem a ilegalidade, o reaparecimento de organizações como a União Nacional de Estudantes – cuja sede fora incendiada dez dias depois do golpe militar – e o aparecimento de guerrilhas de esquerda que aderiram à força das armas para realizar sequestros e sabotar a governação com atos terroristas.
Dilma Rousseff, (ainda) atual presidente do Brasil, garante que nunca participou em nenhuma ação violenta da “sua” Vanguarda Popular Revolucionária. Mas isso não a impediu de ser detida em janeiro de 1970, torturada durante 22 dias e libertada dois anos depois, pesando menos 10 kg.
Foi ainda Costa e Silva a assinar o ato institucional – nome dado aos decretos do regime militar – n.o 5, que vem acrescentar à Constituição de 1967 o reforço dos poderes presidenciais e o fim de vestígios democráticos como a eleição de delegados sindicais. Despedem-se, prendem-se e reformam-se juízes, políticos, delegados sindicais e qualquer cidadão oposicionista. Na Amazónia, a guerrilha de Araguaia vai ganhando dimensão e obrigando o exército a esforços extra para conter a rebelião comunista – uma luta que passa ao lado do resto da população brasileira, uma vez que o silêncio imposto pela censura impede que este movimento seja conhecido pelas massas até ao regresso à democracia.
Difícil de esconder foi o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, que passara por Portugal entre 1959 e 63 – um caso que obrigou os militares a ceder na exigência de 15 presos políticos para garantirem a segurança do diplomata aliado. Aconteceu durante os dois meses de gestão, entre agosto e outubro de 1969, de uma liderança tripartida entre os chefes do exército, força aérea e marinha, que por sua vez antecedeu o mandato do general Emílio Garrastazu Médici.
O mártir Vladimir Herzog Foi ele o rosto do período mais repressivo da ditadura. As siglas DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) tornam-se parte do vocabulário comum, como agências responsáveis pelo aumento do número de detenções, torturas, exílios forçados e desaparecimentos.
É nas instalações de São Paulo do DOI–CODI que aparece morto Vladimir Herzog, um jornalista opositor que se apresentara voluntariamente para esclarecer as suas ligações ao ilegalizado partido comunista. A divulgação da sua imagem enforcado na cela não convenceu ninguém de que se tratava de mais um dos milhares de “suicídios” com que o governo justificou a morte de opositores detidos. A comunidade judaica deu o exemplo, não dando a Herzog um funeral de suicida, como manda a religião. Mais tarde, o rabino Henry Sobel diria que “o assassínio de Herzog foi o catalisador do regresso à democracia”.
Mas sustentado por um crescimento económico que chegou a alcançar os 12% anuais – apesar do descontrolo da inflação –, o regime durou mais uma década. Sob o comando do general Ernesto Geisel suaviza-se moderadamente, apesar da resistência da ala dura. O aumento dos preços do petróleo afetou uma economia que ainda importava mais ouro negro do que exportava. João Oliveira Figueiredo foi o último líder deste regime, entre 1979 e 1985. Foi ele que assinou a lei da amnistia, que permitiu o regresso de milhares de exilados, mas também garantiu a proteção dos opressores.
Três décadas depois do regresso à democracia, o Brasil parece outra vez à beira de uma luta de classes. A capacidade de mobilização está outra vez no auge, à esquerda e à direita. Mas apesar de haver quem anuncie novo golpe, é difícil imaginar uma repetição da história. Até porque já não se vive em guerra fria e isso faz toda a diferença – de Brasília a Washington.