“Devia ser regra: Não intervir num país que não compreendemos.”
Michael Ignatieff
O tempo passa. E o cerco aumenta. De várias formas. Mas com os mesmos objetivos. Estilhaçar um dos pilares principais das sociedades europeias, ocidentais e nacionais. A sua segurança. A vida planeada, estruturada e, acima de tudo, assente na previsibilidade. Depois de Istambul, Nairóbi, Jacarta, Paris, Nova Iorque, Madrid, Londres, Bagdade, foi a vez de Bruxelas. A besta negra e radical exibe, façam as análises que quiserem, e atua com eficácia onde mais dói. Junto de locais públicos, com as pessoas normais a serem os seus alvos principais. Com exibição pública do sofrimento. Terrorismo travestido de psicopatia grupal demoníaca de exemplar eficácia mediática.
Com exportação de sofrimento e de terror ampliados ao máximo e sempre em direto, para todos se impressionarem. Com o estertor do sofrimento primário e sem sentido a quase cegar-nos de sede de vingança. Tudo simples e primário para provocar a radicalização. E os choques de civilizações e de religiões.
Quantos de nós avisámos. Que, por exemplo, se o caos chegasse à Turquia, a Europa não poderia sacudir responsabilidades. Muita dessa inocência está à vista. A Turquia é o quintal mais próximo da Europa, tal e qual território laboratório de terrorismo por procuração. Aliás, a Turquia que vê o Daesh a estender-se de algumas das suas fronteiras até já às montanhas da Argélia. Aliás, as lições da história e da geografia (menosprezadas) mostram-nos como uma espécie de “fronteiras sem nação” estão a baralhar toda esta problemática. A Turquia, que tem urgentemente de deixar de ser o útil intermediário desta guerra com a Europa e com o Ocidente. A figura de intermediária contratada pelos europeus não esconde nem o guia monstruoso das asneiras praticadas no Médio Oriente, nem a verdade inconveniente de que os erros europeus e ocidentais são mais do que muitos. Se exemplos existem, o caso da Síria é claríssimo. Porque a Síria é a prova viva do fracasso da política externa e de vizinhança da Europa a sul e leste do continente.
Aliás, a Turquia sabe que o seu Curdistão é, infelizmente, uma espécie de sala de espera de milhares de pessoas que já se vão resignando que pouco futuro terão. Almejam é algum presente. Das coisas certas que François Hollande tem dito é que a Europa está em guerra. É verdade. Uma guerra a sério. Sem ser virtual. De se ouvir falar e de se ver em filmes. Que deveriam ser de visionamento obrigatório, como o assalto a Londres. Em versão cinematográfica, está lá tudo.
O Daesh, a Al-Qaeda, o radicalismo islâmico são mesmo monstros providenciais. Até porque em todo o terrorismo do chamado Médio Oriente, as escolhas são poucas. E, normalmente, a escolha principal é quem é o principal inimigo. O resto vem a seguir. Michael Ignatieff, em 2013 e 2014, andando pelo mundo, já tinha assinalado: “Devia ser regra não intervir num país que não compreendemos.” Fazemos de conta que não aconteceu ou que não percebemos. Mas goste-se ou não, agora percebemos que, afinal, Kadhafi, Saddam e outros eram tampões para muita coisa, não eram? Já não temos Kadhafi e Saddam e outros. Mas temos o Daesh, a Al-Qaeda, dezenas de mini Kadhafis e Saddams. Afinal, Henry Kissinger tinha razão. Era mais fácil e seguro lidar com os do passado, com rosto, do que com os de agora, velhacos e traiçoeiros. Carregados de sede de vingança.
Como derrotá-los? Apenas explicando que o islão e democracia são compatíveis? Ou colocando a infantaria, pessoas e botas no terreno, para lhes ganhar a guerra? Devemos ou não acabar com a unilateralidade ocidental e regressar a Vestefália? E mudar a política externa europeia? É que o pragmatismo na política internacional deve, por exemplo, vigorar nas opções a tomar nesta guerra por procuração escondida. Por tudo isto, deveremos aprender de vez: não podemos continuar a intervir em países e territórios que não conhecemos bem e só com o pretexto da defesa de valores que não são os dos ocupados e guerreados. Eu sei que isto não é politicamente correto. Mas tem de ser dito. Porque é a verdade. Ser dito quando estamos a ser atacados. Para não irmos outra vez com o rebanho, como aconteceu no ido Charlie. Que, como se vê, de nada serviu. Também para esse peditório não dei. Porque não fui nem sou Charlie.
Escreve à segunda-feira