O prazer da imperfeição

O prazer da imperfeição


São cinco histórias que celebram 25 anos de existência literária de Jaime Ramos, herói de policiais, um género muito pouco cultivado ou reconhecido por cá.


O que se aprende com o mundo, conforme a idade vai avançando, é que a imperfeição é o melhor que ele tem para nos dar. Aceitar e exercitar a imperfeição, eis a verdadeira arte. Ou talvez se trate, tão só, de uma extravagância vital, que, no universo do romance policial, surgiu aliada à solidão melancólica dos idealistas e a uma espécie de código de honra do comboy em repouso. Formaram-se dessa massa Sam Spade (Dashiell Hammmett) e Philip Marlowe (Raymond Chandler), heróis do romance de mistério realista norte-americano, sucessores extraviados do tradicional (e tão enfatuado) detetive dedutivo britânico.

É dessa linhagem de escaldados da vida (hard boiled) que descende o inspetor portuense Jaime Ramos, a quem nada do que é humano é estranho, ou quase. Uma estirpe na qual o criador, Francisco José Viegas, enxertou a bonomia e o culto dos prazeres da mesa (pelo meio do livro de que aqui se falará, há uma bela receita de frango frito), do copo, do fumo e da leitura (“Ele lia romances, era uma vergonha”), sinais identitários dos detetives de tradição mediterrânica (menos pessimistas e introspetivos que os seus parentes nórdicos), os comissários Pepe Carvalho (Manuel Vázquez Montálban), Montalbano (Andrea Camilleri), Brunetti (Donna Léon) ou Kostas Jaritos (Petros Markáris).

“Tudo o que aconteceu depois foi completamente irreal, porque era demasiado real.” A frase do romancista chinês Mai Jia (autor de “Cifra”, um thriller excecionalmente inventivo) serve de epígrafe à primeira de cinco histórias (para cinco crimes e cinco rastos de mulheres) escritas entre 2000 e 2014 e agora coligidas no volume “A Poeira Que Cai Sobre a Terra”, comemorativo dos 25 anos de existência literária e 60 anos de vida de Jaime Ramos. A realidade que supera a ficção e implica um confronto com notas e ecos de nostalgia e lirismo, é a matéria prima destas narrativas. Herói apurado ao longo de oito romances, Jaime Ramos tornou-se entretanto uma espécie de ilhéu em si mesmo (perdeu pelo caminho o contraponto, o inspetor Filipe Castanheira, a dado momento autoexilado nos Açores).

Ganhou mais carne e osso, mais peso, supõe-se que até mesmo dores nas articulações, e tudo o que lhe falta em insight psicológico (tem pouca pachorra para esses rodriguinhos) foi sendo compensado por esta cada vez mais palpável e prosaica existência real.

Perante um corpo carbonizado, uma atleta morta num quarto de hotel, um Pai Natal alvejado numa praça solitária, uma mulher asfixiada numa livraria ou uma rapariga morta numa casa de banho de discoteca, Jaime Ramos não opta pela resolução mais fácil para os problemas: “Sentimentalismo é fácil demais, banal demais. Versos. Palavras com efeitos certos, com sentidos muito parecidos ao seu contrário. Não sejas sentimental.” Prevalece sobre tudo uma lógica, porque cada história tem de ter um princípio e um fim, sempre.

Mas, perto dos 60 anos, Jaime Ramos sabe que essa lógica não é mais do que o reconhecimento da previsibilidade triste na vida dos outros. Sente “uma insólita sensação de estranheza ao confirmar que as coisas tinham um sentido apenas quando ele precisava que elas tivessem um sentido.” Jaime Ramos junta peças que os outros não veem e gosta dos crepúsculos. É o policial mais perene da literatura portuguesa, um sujeito imperfeito, e raro.