Mulher e negra. Para começar nunca foi pouco. E se o génio tantas vezes mostra apreço pelas piores circunstâncias, há algumas décadas esta era das combinações mais problemáticas nos EUA. Nina Simone aprendeu cedo com o que contava.
No seu primeiro recital, tinha ela dez anos, viu os pais serem retirados dos seus lugares na primeira fila para que um casal branco os ocupasse. Estava longe, naqueles dias, da presença ameaçadora da temperamental e imprevisível artista que de um momento para o outro podia ir muito para lá do tom desafiador e ofender ou até ser violenta com o público.
A coisa chegaria a tal ponto que o dono de um dos clubes onde atuava com alguma regularidade preferiu contratar seguranças para proteger os seus clientes dos acessos explosivos que tanto podiam fazê-la abandonar o palco ou virar-se em busca de um adversário. Mas daquela vez, na biblioteca local de Tryon, na Carolina do Norte, era ainda a menina que se limitou a levantar-se do piano para anunciar que se a queriam ver tocar os seus pais deviam voltar à primeira fila. Alguns dos brancos que estavam na plateia acharam graça, soltaram algumas risadas, mas os seus pais foram devolvidos aos lugares. No dia seguinte, segundo revela no seu livro de memórias de 1991, “I Put a Spell on You”, sentiu-se “como se tivesse sido esfolada, e cada golpe, real ou imaginário, rasgou a frio. Mas, a pele voltou a crescer um pouco mais forte, um pouco menos inocente, um pouco mais negra”.
Ela nunca se alheou de um sentido de dever em relação à população negra e até aos dias de hoje o seu exemplo continua a servir de inspiração, tendo ficado célebre a frase em que defendeu a obrigação de um artista refletir o espírito do seu tempo. Negra, mas de um tom na paleta que torna pertinente a questão do grau de negritude, com o nariz bastante largo, lábios maiores e o cabelo armado, a Simone bastava a altivez com que se erguia e enfrentava os olhares para bater de frente com o ideal de beleza que a sociedade esculpe e monumentaliza a todo o momento.
Daquilo que pensava àquilo que se permitia dizer não parecia haver nenhum fosso, e das suas afirmações ao poder da voz, ela foi a corajosa antítese do que a sociedade espera de uma mulher negra.
“Para mim, nós somos as criaturas mais belas em todo o mundo… os negros. Acredito nisto em todos os seus sentidos”, disse. Mas se a sua negritude assume uma importância a vários níveis, a determinação com que envergava a própria pele não era apenas um desafio ao mundo, mas era também um escudo e até, algumas vezes, uma máscara.
Com grande custo pessoal, a sua coragem conta a história de uma mulher a quem nunca deixaram esquecer como a aparência de uma pessoa, ao provocar um contraste, se torna um desafio, e pode ser subtilmente criminalizada. Mesmo nos dias que correm, de um negro espera-se uma personalidade que a todo o momento vigie o seu temperamento, abandone qualquer postura confrontacional. Como notou James Baldwyn – um dos mentores de Nina e o escritor a quem é reconhecido o mérito de ter conseguido contar aos brancos o que pensavam e sentiam os negros norte-americanos, aqueles que sentem ainda o tom da pele como um estigma, algo que não os deixa esquecer de que descendem de escravos – ao longo da história de um país reconhecido pela sua prepotência e beligerância, “a única vez em que a não-violência foi elogiada foi quando eram os negros a praticá-la”.
O papel de Nina Simone na história tem sido questionado numa altura em que revelações novas sobre a sua vida íntima expõem novos ângulos de uma vida que empresta à lenda um subtexto complexo e rico. O dom quase sobrenatural que se revelou quando começou a sentar-se ao piano, com apenas dois anos, aliado à formação clássica que recebeu depois de um casal de brancos se ter oferecido para pagar-lhe lições – deslumbrado ao vê-la acompanhar o coro comunitário quando tinha apenas seis anos –, serviu-a como a ninguém antes ou depois dela na hora de combinar a sedução da arte com a urgência do protesto.
Beleza e terror encontraram através do seu talento um inventivo e arrebatador meio de fusão. Simone estava tão à frente do seu tempo que os próprios críticos de jazz reagiram com perplexidade perante uma voz que ia uns passos além do horizonte que já os confortava. Uma voz que não tinha o alcance ou a multitude de registos das de outras cantoras, mas que tinha sido moldada pela dor e humilhação que o mundo lhe causou, e sabia como mais nenhuma convocar em palco os demónios de uma cultura que precisa ser embalada, levada a sonhar para se deixar confrontar com os seus persistentes preconceitos, a sua culpa pelo inferno construído diariamente contra todos os que continuam a ver-se sentados nos bancos de trás da humanidade.
Passados tantos anos, mesmo depois da sua morte em 2003, o tom da pele de Simone, as suas feições e cabelo continuam a ser relevantes não porque ela o quis, mas porque o mundo quis envergonhá-la por se parecer como parecia. A força do seu caráter acabou por vingar-se orgulhosamente do desprezo com que era olhada. E é por isto mesmo que tantas mulheres negras, e não só, expressaram abertamente a sua indignação e raiva quando Hollywood anunciou planos em relação a um filme baseado na vida deste ícone cultural negro.
Não sendo possível separar a força daqueles traços físicos nem a sua tez particularmente escura, e que carrega o lado africano na sua identidade afro-americana, a pergunta que se impunha era se a indústria cinematográfica tinha liberdade para escolher uma atriz com uma compleição mais ‘agradável’ para a generalidade do público? Não seria isso uma tentativa de apropriação do legado de Nina Simone apagando precisamente o sentido em que este se mantém atual e mais doloroso? A escolha de Zoe Saldana, uma atriz negra de pele clara e feições tão ao gosto do padrão de beleza europeia (dado falsamente como universal) não traía precisamente a denúncia da injustiça de que a cantora se tornou uma porta-voz, e contra um mundo que continua a servir-se de nuances para castigar a diferença?
O filme “Nina” acabou desfeito em pedaços antes mesmo da estreia, prevista para abril. Foram repescados termos como blackface, aludindo aos atores brancos que, desde meados do século XIX, pintavam a cara de preto e exageravam o tamanho dos lábios para servir ao público o estereótipo dos negros.
O debate ganhou força com as primeiras imagens que surgiram da estrela de descendência dominicana encarnando Simone. Saldana tinha já protagonizado dois mega-blockbusters – “Avatar” (2009) e “Guardiães da Galáxia” (2014) – em que representava criaturas alienígenas de pele azul e verde, mas, ironicamente, foi ao tentar passar por uma mulher negra que atraiu as piores críticas. Não exatamente pelo seu desempenho, mas por retirar a possibilidade de uma atriz que tenha sofrido na pele algo semelhante ao que sofreu Simone pudesse desempenhá-lo.
Foi Ta-Nehisi Coates – o jornalista norte-americano que assumiu enorme projeção no atual debate sobre a forma como os negros continuam a ter todos os motivos para viver com medo no país – quem, num artigo na revista “The Atlantic”, denunciou a hipocrisia da escolha dos produtores do filme “Nina”, notando que “há algo de profundamente vergonhoso e doloroso no facto de mesmo nos dias de hoje uma jovem Nina Simone se ver discriminada no casting de um filme sobre a sua vida”.