Johan Cruyff. O revolucionário que ignorava a lógica do futebol

Johan Cruyff. O revolucionário que ignorava a lógica do futebol


O icónico jogador do Ajax, Barcelona e da seleção holandesa faleceu aos 68 anos. Exemplo do futebol total, foi um visionário, até na maneira desconfiada como lidava com a glória: “As lendas também podem alimentar-se de uma derrota”. Futebolista influente e treinador genial, iniciou uma revolução que dura ainda hoje.


“Se não estás lá é porque chegaste demasiado cedo ou demasiado tarde”. Desta vez, foi Johan Cruyff a não aparecer e fez jus a uma das muitas frases que tornaram célebre o seu pensamento agudo. O holandês, o futebolista mais influente do século XX e que mudaria enquanto treinador todo o curso do futebol moderno através da sua visão revolucionária, morreu ontem aos 68 anos (1947-2016), derrotado por um cancro no pulmão que anunciou em outubro passado. Saiu (demasiado) cedo, mas com glória, como no Mundial de 1974, quando perdeu a final para a Alemanha: “Se tivéssemos ganho, talvez ninguém falasse dessa final e da perfeição do futebol que praticámos. As lendas também podem alimentar-se de uma derrota.” Esta lenda devorou todas as glórias.

Cruyff alimentou-se do futebol com golos (392) e jogos (520) numa carreira de 19 anos enquanto jogador – mas a sua influência foi mais vasta do que as vitórias e as jogadas que criou, graças à sua personalidade de líder, pensador e comunicador. Como treinador venceu 242 encontros, empatou 75 e perdeu 70. E fez disso tudo um triunfo, uma glória. Instalou-se nela, na glória, como contou Jorge Valdano.

“Não houve nenhum jogador que tenha tido tanto êxito enquanto futebolista e treinador. Está na mesa histórica dos quatro: Di Stéfano, Pelé, Cruyff e Maradona… E como treinador é algo mais do que um vencedor: é uma referência, a personificação de uma escola a que, de todas, a Espanha deve ser a mais agradecida”, conta o avançado argentino campeão mundial ao lado de Maradona em 1986. E a Espanha, na hora do adeus, não esqueceu o seu grande mentor. Despediu-se com a dor de um dos seus. Tal com o fez a Holanda, o Ajax e o Barcelona, todos beneficiários do seu futebol cerebral.

“O futebol joga-se com a cabeça, as pernas estão lá para ajudar”, disse um dia. Meio caminho andado para o futebol total – totaalvoetbal. A cabeça e tudo o que gira à volta dela. Cruyff sempre pensou diferente e provou-o durante a sua passagem como treinador pelo Barça, entre 1988 e 1996: utilizou a velocidade, o espaço e a fluidez tática que ele e Rinus Michels, o seu treinador no Ajax, souberam coser e transformar uma equipa moribunda num legado que ainda hoje dura.

O eterno camisola 14 acalmava a ansiedade do seu jogo com o tabaco, esse vício que viria a ser o seu inimigo mortal. O primeiro aviso chegou em 1991, com um enfarte. Faria uma campanha publicitária, vestido com uma gabardina, um chupa-chups e a dar toques num maço de Camel. Até ontem, quando chegou a sua “morte tranquila rodeado da sua família”. Aconteceu em Barcelona porque foi ali que, em 1973, se transferiu do Ajax e iniciou uma longa e conturbada relação de amor com a cidade e o clube. Na sua primeira época, no reencontro com Michels, venceu o campeonato, o primeiro em 13 anos dos catalães e obteve uma série de 27 jogos sem perder incluindo o célebre 5-0 ao Real em Madrid.

Foi aos 15 anos que Cruyff, escolhido para apanha-bolas na final de Amesterdão da Taça dos Campeões Europeus em 1962, ganha pelo Benfica ao Real Madrid, que teve uma epifania quando testemunhou com os seus olhos os movimentos constantes e difíceis de seguir, a força e a visão do avançado argentino Alfredo Di Stéfano. Foi aí que teve a noção de como o jogo devia ser jogado.

A sua estreia chegaria com 17 anos no Ajax e aí começou a tentar implementar tudo o que sabia e o que viria a aprender de um modo muito próprio. Tão importante que Rinus Michels, o seu mentor e treinador no Ajax, Barcelona e na seleção da Holanda, confessaria um dia: “Sem Cruyff não tenho equipa”. Na seleção, esteve no epicentro da “Laranja Mecânica”.

De repente o mundo encheu-se de apóstolos do cruyffismo e no Barça não pararam de dar voltas à sua ideia de jogo, que alcançou o cume na conquista em Wembley da Taça dos Campeões em 1992 com Koeman e o futebol total ganharia um nome mais anglófono: Dream Team. Guardiola é o seu mais fiel discípulo: “Ele pintou a Capela Sistina, os treinadores do Barcelona limitam-se a restaurá-la”. Luis Enrique é apenas o último seguidor.

“Com o seu futebol estava no coração de uma revolução. Se quisesse, podia ser o melhor jogador em qualquer posição no campo”, disse Eric Cantona. De gola levantada, com o respeitinho que se deve ter. Isso e nunca o tratar por tu, como o disse uma vez Cruyff a Valdano durante um jogo quando, debaixo do braço, mantinha a bola segura junto a si. “A Johann Cruyff se le trata de usted”.