Uma vez tive de combater um grande burlão. Foi um conflito complexo, arrastado, difícil. O que sei de burla aprendi-o então: umas coisas porque me explicaram, outras porque as fui descobrindo.
O traço mais característico da burla soa a paradoxo: é o único crime que, para ser cometido, necessita da colaboração ativa da vítima. Parece impossível, mas é mesmo assim: sem colaboração da vítima não há burla. O burlão esforça-se por enganar, mas só consegue os intentos se o burlado assume o engano.
É isso que torna a burla tão especial. É comum o burlado não a denunciar, justamente porque está enganado, julgando que está certo. Ou só a denuncia tardiamente, quando se dá conta do logro e já é difícil remediar. É também frequente que, mesmo depois de despertar para o logro, o burlado prefira calar-se por vergonha de se ter deixado enganar. E, enquanto permanece enganado, o burlado é o melhor aliado do burlão: “Então o senhor vendeu-me a Torre de Belém por tão bom preço e agora não me deixam ficar com ela porquê?”
A geringonça surgiu na esteira de uma burla: a burla autoinduzida pelos propagandistas da PàF do “ganhámos as eleições”. Às vezes convencemo-nos dos nossos próprios enganos – foi isso! É deveras extraordinário que, ainda hoje, cinco meses depois das eleições de 4 de outubro, haja ainda tanta gente no espaço da PàF a declarar – e alguns a acreditar – que “ganhámos as eleições”. A verdade não é, hoje, muito difícil de perceber: se a PàF tivesse ganho, estaria a governar; não estando a governar, é porque não ganhou. Ponto final.
A interpretação do resultado das eleições não é muito diferente de todas as outras desde 1976. Há uma única singularidade: é a primeira vez que o PSD alcança o maior grupo parlamentar sem haver maioria à direita do PS; e é a primeira vez que há maioria do PS e sua esquerda sem o PS obter o maior grupo parlamentar.
Era evidente, na noite de 4 de outubro, que a pressão para uma maioria das esquerdas ia ser fortíssima – só seria de estranhar o contrário. Tal como, em situação inversa, seria fortíssima a pressão para um entendimento de centro-direita.
É duvidoso que o quadro tivesse outro destino. Mas a PàF e o Presidente da República fizeram o possível para que não houvesse alternativa e conduziram-nos direitinhos à geringonça. O Presidente, com aquela comunicação de 6 de outubro, sem antes receber os partidos, cavou mais divisões em vez de diligenciar em privado. E os partidos da PàF, acelerando na burla autoinduzida, ao fazerem aprovar com pompa, no mesmo dia 6, internamente, um novo acordo de governo, que Passos e Portas assinaram com solenidade no dia seguinte. Tudo redundante e contraproducente. Propaganda oca e inconsequente. Quando, mais tarde, quiseram arrepiar caminho, já estava completamente estragada qualquer hipótese de entendimento com o PS.
Repito: tenho dúvidas de que, objetivamente, o caminho pudesse ser outro. Mas se houvesse alguma hipótese, esta só se desenvolveria se, logo na noite de dia 4, a PàF reconhecesse que não tinha ganho e que só haveria governo se se conseguisse acordo que envolvesse outro partido parlamentar, agindo em conformidade. A precipitação da arrogância festiva saiu de maus conselhos; e produziu o fracasso que vimos.
Só há governo com maioria parlamentar – eis a verdade democrática tão simples.
A burla autoinduzida teve antecedentes. Houve pouca convicção efetiva quanto à coligação de listas conjuntas, pelo menos por parte de Paulo Portas e do CDS. Talvez também no PSD. Por isso a decisão foi tomada tão tardiamente, tão em cima das eleições – eram partidos que governavam juntos há quatro anos. A coligação foi decidida para limitar danos, não para conquistar a maioria. Por isso, nem na reta final da campanha, quando as coisas pareciam ir de vento em popa, os dirigentes pediram a maioria – e era necessário pedi-la. No final, não só não se obteve a maioria, como o resultado foi o segundo pior de sempre de PSD e CDS (38%).
A ideia motriz de “derrotar o PS” valia apenas como ilusão, pois não serviria para nada se a PàF não reconquistasse a maioria parlamentar. Podia perder 16 deputados e ainda ganhava. O problema é que perdeu 25… não ganhou. Também não tem sabido conduzir-se nos tempos seguintes. Há dias, o PS retribuiu o qualificativo de geringonça alcunhando a ex-PàF de caranguejola. Infelizmente, é um pouco isso. Cinco meses passados, enquanto a geringonça vai vencendo as suas provas políticas, a caranguejola PàF não cessa de escangalhar-se.
A legislatura abriu tonitruante. Mas foi ânimo de pouca dura. Primeiro, foi Paulo Portas a retirar-se sem luta, renunciando a defender a vitória que não foi. Depois, os dois partidos sinalizam cada vez mais diferenças, que exibem. Enfim, o CDS já esqueceu por inteiro o programa conjunto para quatro anos e partiu para outra. O PSD terá de fazer o mesmo.
Ficam estas perguntas simples: se a esquerda formou um governo em que ninguém votou e a direita esfarela a “coligação para quatro anos” que teve mais votos, as eleições foram para quê? Dir–se-á: é que a esquerda é capaz de enfrentar a prova de governar e a direita não está à altura do desafio de ser oposição.
Seja como for, para que serviram as eleições? Votámos em quê? Se um programa conjunto para quatro anos não durou sequer quatro meses, o nosso voto vale o quê? E as “garantias” – ao menos, as “nove garantias” da PàF -, lembram–se das “garantias”? Quem garante? E quem é que mais ordena?
Este é mais um caso de democracia sem qualidade. Enquanto não reformarmos o sistema eleitoral e não criarmos um quadro em que o eleitorado torne efetiva a responsabilidade política de quem nos “representa”, continuaremos a viver num regime de postiços e de enganos. E só por sorte não seremos arruinados. Também não temos tido sorte.
Subscritor do manifesto Democracia e Liberdade