Café Santa Cruz. Em nome do Pai, do Filho e da cidade de Coimbra

Café Santa Cruz. Em nome do Pai, do Filho e da cidade de Coimbra


O edifício mantém o esplendor de uma igreja, a azáfama de um armazém e a vida de uma habitação. Mas é como café que continua a chamar a atenção de turistas e coimbrões


Coimbra tem uma vida académica diferente de todas as outras, vive dos ares do Mondego e dança ao som do seu próprio fado. Muitas histórias ali se viveram – várias com o Café Santa Cruz como pano de fundo.

Mas a sua história principal está inscrita nas paredes, no teto, nas janelas e na sua entrada grandiosa. Isto porque, apesar de ter sido fundado em 1923, o edifício em que se encontra é muito mais antigo.

O café está instalado na antiga Igreja de S. João de Santa Cruz, um edifício construído em 1530. Com a expulsão das ordens religiosas em 1834, a igreja é dessacralizada e passa a assumir várias funções – armazém de ferragens e canalizações, esquadra da polícia, casa funerária, quartel de bombeiros e casa de habitação. Só 89 anos mais tarde é inaugurado o Café Santa Cruz.

O espaço começou a ser referido na imprensa local logo no dia em que abriu: “O Café Restaurante Santa Cruz abriu hoje as suas portas ao público, sendo de esperar que ali acorra, em multidão, a melhor sociedade citadina que, por certo, ali virá a dar-se rendez-vous hoje e sempre”, lia-se na edição de 8 de maio de 1923 da “Gazeta de Coimbra”.

E até a data da inauguração foi escolhida com um propósito histórico. De acordo com vários documentos antigos do estabelecimento, o café abriu naquele dia por se localizar na Praça 8 de Maio, cuja denominação pretende homenagear a entrada do exército liberal, comandado pelo duque da Terceira, na cidade de Coimbra em 1834.

Da política à literatura Desde 1923, foram muitas as figuras que passaram pelo Café Santa Cruz. Com o passar do tempo, a memória foi apagando alguns registos das personalidades que ali conviveram, mas Vítor Marques tem alguns nomes bem presentes. “Da política, esteve cá Mário Soares, Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Carlos Zorrinho, Jerónimo de Sousa, Francisco Louçã, Mariana Mortágua, Paulo Rangel, Nuno Melo, entre outros”, recorda.

A verdade é que, apesar de hoje em dia ser frequentado por pessoas dos vários quadrantes políticos, este café chegou a ser frequentado por elementos ligados à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que ali ficavam atentos a possíveis conspirações contra o regime de Salazar. “Diz-se que havia sempre elementos ligados à PIDE no café e que estavam identificados, daí haver sempre alguma cautela quanto às conversas.” Mas, mesmo assim, o Café Santa Cruz albergava todos: “Quando havia manifestações contra o Estado Novo, por vezes [os estudantes] eram cercados pela PIDE (as ruas eram fechadas nos seus extremos) e, como não tinham como fugir, refugiavam-se em diversos estabelecimentos comerciais ou em consultórios que existiam na Baixa. Eram tratados como ‘clientes’ ou ‘pacientes’ (…) Há espaços reservados dentro do café, construídos nos tempos mais antigos e que ainda hoje se mantêm, que eram utilizados para as refeições e para algumas conversas ou tertúlias mais restritivas ou ‘conspirativas’”, conta Vítor Marques.

Vários nomes ligados à vida académica e cultural de Coimbra também fizeram do Café Santa Cruz o seu ponto de referência. É o caso de Bissaya Barreto (político, professor de Medicina na Universidade de Coimbra e criador do Portugal dos Pequenitos), o fadista Luís Goes e o escritor e professor da Faculdade de Letras daquela universidade Vitorino Nemésio.

“Da música, esteve cá José Cid, Sérgio Godinho e António Vitorino de Almeida. Da literatura , tivemos a presença de José Luís Peixoto, Mia Couto, João Tordo, Francisco José Viegas, entre outros.”

Um café da cidade Coimbra sempre teve vida, muito por causa das suas universidades e dos milhares de alunos que a escolhiam como a sua casa durante a altura dos estudos. Muitos deles eram (e são) clientes do Café Santa Cruz: “Para além da Queima das Fitas e da Receção ao Caloiro, quando somos visitados principalmente pelos antigos alunos, há sempre atividades organizadas por algumas secções da Associação Académica de Coimbra, desde a secção de fado, a Rádio Universidade de Coimbra e o grupo ecológico, entre outros.”

Com o passar dos anos, este café foi criando laços com os clientes mais antigos, mas continuou a receber as novas gerações de médicos, arquitetos e economistas que ali se formaram e assentaram: “De manhã costumamos receber as pessoas que trabalham na Baixa ou as pessoas que vêm às compras. Temos também muitos reformados a frequentar o café. A média de idades baixa quando temos atividades da Associação de Estudantes ou de núcleos das faculdades ou institutos”, diz ao i o sócio do espaço.

“Um estabelecimento comercial com quase 93 anos de atividade comercial ininterrupta teve os seus altos e baixos, como é natural”, confessa ao i Vítor Marques, um dos proprietários do estabelecimento. No entanto, o Café Santa Cruz continua a ter o lugar de destaque que sempre almejou, desde os anos 20 do século passado. “Vamos recebendo as mais diversas iniciativas: tertúlias, apresentações de livros ou de músicos, fado de Coimbra, conferências de imprensa e atos de divulgação das mais diversas entidades IPSS”, o que continua a trazer muitos miúdos e graúdos a este estabelecimento.

De igreja a armazém, de armazém a habitação, de habitação a café. Desde o século xvi que aquele edifício deu vida à Baixa de Coimbra. Coube ao Café Santa Cruz continuar a iluminar a cidade – uma tarefa que tanto prazer dá a quem ali trabalha e que, por vontade de todos os que por lá passam, irá continuar a ser executada durante muitos mais anos.

joana.alves@ionline.pt