Dizem os dicionários, as enciclopédias e outros repositórios do saber que o escarrador é uma peça de museu e de casa de antiguidades, um bibelô de colecionadores e um elemento da história social, nomeadamente, da segunda parte do século xix e do início do xx. Mas dizem mal, ou pelo menos dizem imperfeita ou insuficientemente, porque o escarrador continua a existir, fora dos museus e livre do pó das antiguidades, e está tão ou mais democratizado do que os escarradores públicos com os quais, no século xix ou no início do xx, se procurava combater a disseminação do bacilo de Koch. Mas hoje, o escarrador – universal como nunca antes foi – não se apresenta em porcelana, loiça ou metal e não visa – com preocupações de saúde pública – evitar que se cuspa para o chão e que assim se disseminem as secreções e o que de malsão elas levam.
Ao contrário do escarrador que aparece como histórico nas entradas dos dicionários e das enciclopédias e como um contentor de proteção e limpeza, o escarrador atual é agente de disseminação e de sujidade. Acolhe o cuspo, sim, mas não o contém, antes o espalha e projeta, num efeito multiplicador de escarro que às vezes é imparável e leva bacilos tão nocivos quanto o de Koch. Por outro lado, o escarrador atual permite mais dissimulação do que o seu antecessor, pois enquanto este, quando era coletivo e público, não permitia mais do que uma cuspidela furtiva a coberto da noite ou da sombra, o atual consente o total anonimato ou a identidade falsa. E nele são acolhidas todas as excreções, ao contrário do seu antecessor, que estava limitado às das vias respiratórias. Cabem nele vinganças, desilusões, azedumes, maus propósitos, invejas, ressabiamentos, estupidez ou maldade puras e toda uma outra sorte de porcarias da alma ou dos sentidos cujo potencial patogénico pode não ter limites.
E está por toda a parte e todos os dias e a todas as horas, mas parece que só de vez em quando é que se dá por ele, pelo escarrador moderno. O resto do tempo parece ser só uma coisa limpa e pura quando, na verdade, permanentemente o escarro convive com o resto que aí se acolhe. Mas só de vez em quando, acordando subitamente com o som do escarro, percebemos que as redes sociais, os comentários online dos órgãos de comunicação social e outros espaços semelhantes podem ser os modernos escarradores. Têm e trazem muitas coisas positivas e boas, mas também muitas negativas e malsãs, entre elas o acolherem, pulverizarem e multiplicarem cuspidelas várias. Recentemente parece que se deu por isso a respeito das reações facebookianas ao livro de Henrique Raposo sobre o Alentejo. Passada a fúria do cuspo e adormecida a indignação com que se reagiu à descoberta de que, afinal, o mundo virtual também está cheio de porcaria e muco, seguir-se-á um novo período de letargia até um novo acordar. E assim ciclicamente, ficando isto por responder: quantos e quão nocivos agentes patogénicos se espalharão entretanto? E qual o tratamento, se o houver?
Escreve quinzenalmente à sexta-feira