Nelson Cruz. Chefe, vou meter folga para ser campeão de corta-mato

Nelson Cruz. Chefe, vou meter folga para ser campeão de corta-mato


Luso-caboverdiano conquistou o campeonato nacional de corta-mato aos 38 anos. Trabalha no Jumbo de Almada há dez anos


Isto das folgas sempre foi algo complicado nas empresas. Ora porque não se comunica, ou porque há muito trabalho para pouca gente, mas acaba-se sempre por se chegar a um acordo. É assim que deve ser, regra geral. E as folgas servem normalmente para descansar, repor umas horas de sono e aproveitar os domingos de sol. Mas há quem aproveite para ser campeão de corta-mato. É o caso de Nelson Cruz, corredor amador de 38 anos da Escola Pedro Pessoa em Almada, que aproveitou para fintar os grandes do atletismo do Sporting e Benfica e alcançar um feito especial no passado domingo – em idade, ultrapassou Carlos  Lopes, que aos 37 venceu o título em 1984. “Não foi fácil para um atleta que não faz disto vida, fui abençoado. Mas os meus adversários, quando se aperceberam da minha vantagem, já era tarde. Foi uma falha deles”, diz ao i.

O atleta luso-caboverdiano, que trabalha como repositor no hipermercado do Jumbo no Fórum Almada, já corre há 20 anos e nunca chegou a um grande clube de atletismo por ter tido “uma evolução muito lenta”, o que levou a que ninguém acreditasse nas suas capacidades. “Comecei no desporto escolar e rapidamente as pessoas viram que eu tinha algum jeito para provas de fundo por ser extremamente magro e ter alguma resistência, mas a minha evolução foi muito lenta”. Sem convites formais do topo, apenas conversas que “ficaram sempre no ar”, o salto nunca aconteceu.

Atleta a longo prazo Mas para se formarem campeões há sempre alguém que acredita e, na carreira de Nelson, foi Pedro Pessoa, homem que hoje leva 30 anos da modalidade nas costas e é seu treinador. “As pessoas querem campeões logo muito cedo. E o Pedro, que conheci aos 22 anos na União Recreativa de Dafundo, convidou-me para treinar com ele e disse-me: “Tens algum potencial, se acreditares em ti e no meu trabalho, a longo prazo, vamos conseguir fazer coisas giras”, afirma.

As tais “coisas giras” foram fortalecendo uma relação de treinador-maratonista e se Portugal não lhe deu oportunidade, o seu país de origem estendeu-lhe as mãos. O que corria sempre mais calmo, e o que treinava mais tempestuoso, uma relação “que equilibra”. Nelson acabou por pedir dupla nacionalidade em 2005 e depois surgiu o convite da Federação Caboverdiana para ir aos Mundiais em Helsínquia. “Passou-me pela cabeça representar Portugal, mas as dificuldades eram tantas, algo que me levou a desacreditar e a optar pelo país dos meus pais”.

E o feito maior foi mesmo os Jogos Olímpicos de Pequim a defender as cores de Cabo Verde, onde o atleta ficou em 48.º lugar, uma experiência única. “Marcou-me bastante, foi uma experiência única e de vida”. E dessas memórias asiáticas, Nelson recorda uma, em que o seu treinador acabou como “campeão olímpico de matraquilhos”: “Quando eu fui fazer a maratona, ele perguntou-me se eu estava em condições de ir à final de matraquilhos, mas eu disse-lhe que não podia e ele fez dupla com um treinador e ganharam”.

A postura humilde, bem disposta e de alguém que “sempre teve de ir à luta” também se liga a um pai de família – com um terceiro filho a caminho – e a um homem que não fazendo do atletismo carreira, teve de trabalhar. E muito. “Trabalhei com o Pedro na construção civil, mas como era pesado arranjei um trabalho mais leve no Jumbo há dez anos, e fui mantendo o emprego, o atletismo que hoje em dia é o meu ganha-pão. Tem, de haver uma grande ginástica da nossa parte, e isso foi feito com muita entreajuda”.

No meio da “loucura” que têm sido os últimos dias, com grandes manifestações de apoios de colegas, quer no trabalho quer nas redes sociais, Nelson tem também uma rotina por cumprir. Entra às 14h30 e sai às 18h30, seguem-se duas horas de treino e depois de volta ao Jumbo, para só sair por volta das 24h30.E as folgas? “Segundas e domingos, que me permitem ir às competições”. Uma fórmula que deu resultados.

Agora segue-se outro desafio: repetir o feito de Pequim e garantir os mínimos (abaixo das 2h19) para o Rio de Janeiro este verão. Vai marcar presença no Nacional de crosse para se preparar para a maratona de Praga, no próximo dia 8 de maio. “Vou ter de estar em dia sim, já corri abaixo desse tempo, e o objetivo é garantir a presença nos jogos olímpicos”. É que Nelson “não pode ambicionar muito mais a nível desportivo” com quase 40 anos, e quer terminar com uma cereja no topo do bolo. Porque mesmo que nunca nenhum clube no país tenha querido estar com ele lá em cima, este atleta não desistiu, e quer repetir o “sonho” com Pedro, os seus colegas e a família ao lado.Desta vez na ponta oposta da Ásia, e com mais algumas folgas por tirar.

jose.capucho@ionline.pt