“Há sempre um copo de mar / para um homem navegar”. Este par é de Jorge de Lima, que sabia andar à cata de pepitas ofuscantes, mas também sabia não serem precisos grandes grupos de caça, dar voltas maiores, puxar palavras arrastando a cauda em arco-íris; sabia que uma rima banal dá conta do serviço, se os versos derem um susto na imaginação e correrem com ela para lá dos lugares mais usados e comuns. José Luís Costa gosta de bater o leque, sorrindo por trás. A sua escrita joga entre a poesia, o aforismo, liga o embalo da pequena estória, da curiosidade, ainda aproveita o ambiente da anedota, usa pequenas colheres, mexe muito, e, no fim, vira a xícara, entornando-a no colo do leitor – a elaborada infusão molhando e perfumando, um pequeno acidente de que o leitor não deixa de tirar algum agrado, mesmo confuso, rindo de coisas a que foi levado e nem sabe se viu ou se apenas intuíu. É difícil não gostar dos pequenos castelos que JLC ergue e desfaz, com uma capacidade de sugestão tão lesta e animosa, uma que se percebe que andou "a estudar à exaustão os Mestres do Desleixo". Não enche as medidas que não é disso que se trata. Mas esta plaquete da editora que se especializou nesse formato, a Douda Correria, convence-nos de que há um espaço de abertura e experimentação literárias que se expressa melhor nos terrenos em que uma maior definição pesa. Além do riso, do incessante movimento, o outro talento de JLC é a forma de baralhar universos, saltar por cima da contemplação e lançar dados sobre a toalha onde se desenham padrões elegantes que se traduzem numa certa infância reconquistada manobrando a linguagem como um tenaz brinquedo.
Edição / Douda Correria
Janeiro de 2016
40 páginas, 8€
CANTO DA ALFORRECA
Que prestígio resta ao bicho, nas hierarquias da Caparica? Nenhum pescador o admira. Da Praia da Mata à Fonte da Telha, crianças organizam brigadas de extermínio. Mas quando a alforreca canta, o mar não acredita, o mar é pele de galinha até perder de vista. São canções tolas, coisas como: «É amarga a vida das alforrecas / Ai Ai Lô / Quero crer na metempsicose / Ai Ai Lô / Quero reencarnar no dedal da tua amada.»
ADEUS A ISSO TUDO
Primeiro, trenós e carruagens, felizes por zarpar, e rolamentos. Depois mares, banheiras, alambiques. Gravatas, botões de punho, chapéus de senhora. «Também as minhas botas, tão doces companheiras, tão prontas a furar fronteiras?» Também as suas botas, senhor Severo. A seguir semáforos, fogos de artifício, retinas, tudo o que envolve luz. Salmos, aulas de carpintaria, senha e contra-senha.
ACROBATA
Antes do primeiro passo, lembra a fartura da rede dos tempos de aprendiz: Estepe de Almofadas, Oceano Salvífico. Vinho que não bebeu: nunca caiu. Hoje, nada a salvaria. A cidade veio toda. Se mar há que a submerja, é o do apetite da cidade para quedas, quebras, feras – lajes de granito querendo o seu cristão.
COMPOSIÇÃO
A professora anuncia: o tema é tremendo e intimida — Deus, quando Tininha tem mais jeito para o desenho. «Um dia vi-O e tinha cara de minúscula mirrada. Enxotei-O para lá da muralha dos brinquedos. No dia seguinte, baixou a bolinha: deixei-o sermos amigos, até a mamã chegar. Prefiro não lhe dar muita confiança. Às vezes poisa no limão, às vezes vai-se». Não escreve bem o que quer. Um eco, ou electricidade estática, força-lhe gralhas no lapso, por lápis.