Na sociedade portuguesa, o exercício da comoção individual ou coletiva parece escamotear a existência de particularidades na nossa panóplia de genes como a do gene do improviso ou do gene da habilidade. Superar as dificuldades, contornar os imprevistos ou esboçar interpretações criativas das regras estabelecidas são o pão nosso de cada dia. Somos bons nisto e há muitos anos. A nossa história está pejada de exemplos em que, a partir da modéstia dos conhecimentos existentes, somámos engenho, arte e sorte para conseguir grandes feitos, na consolidação da nacionalidade, na expansão dos descobrimentos ou na saga da nossa diáspora. O drama é que o registo do “salve-se quem puder” conduz a desequilíbrios sociais em que os cidadãos procuram desenrascar-se, desesperam por encontrar as melhores formas para não cumprirem o que devem e tentam manter-se à tona de uma vida pontuada por comportamentos de sobrevivência. E não obstante os clamores, suores e sestas dos partidos da oposição, os últimos quatros anos, apesar das reconfigurações realizadas pelos portugueses nas suas vidas, só agravaram o registo e a predisposição dos genes, com desastrosos resultados nos equilíbrios pessoais, no défice e na dívida pública.
A verdade é que quando o Partido Socialista se dá ao desplante de, para se desenrascar de uma embrulhada orçamental da maioria parlamentar, não cumprir as regras do Regimento da Assembleia da República e apresentar propostas de alteração ao Orçamento do Estado (OE) para 2016 dez dias depois do prazo limite, que exemplo é dado aos cidadãos para cumprirem prazos? Por que razão as regras no parlamento, que deviam ser cumpridas, não o são, e os portugueses, no espaço comunitário, não podem ir abastecer de combustíveis a Espanha, onde é bem mais barato e tem menor carga fiscal? Bem sei, dizem que é por patriotismo. O problema é que o patriotismo dos bolsos vazios dos últimos anos em muito pouco contribuiu para o reequilíbrio da perceção individual entre direitos e deveres de cidadania ou para a formação de cidadãos com melhor sentido cívico, em especial quando são tratados por alguns serviços públicos num registo de pressuposto de incumprimento das suas obrigações. O problema é que aos patriotas de bolsos vazios foram criadas expetativas de não aumento de impostos, o que não aconteceu no ISP e no IVA de alguns produtos.
E é um mimo assistir aos mesmos habilidosos que queriam que, em 2011, o PS votasse contra o OE para 2012, depois de ter acabado de assinar o compromisso internacional do memorando de ajustamento económico com a troika, verberarem agora doutrina e autoridade moral para que o PSD faça o contrário do que defenderam nesse tempo. Apesar do mortal encarpado de alguns, em ambos os casos prevaleceu o sentido de responsabilidade perante o compromisso internacional do Estado português com os credores, com a Grécia e com a Turquia.
Neste tempo de habilidosos e desenrascas em que, em breve, Portugal terá um Orçamento do Estado para o que resta de 2016, já nem será de espantar que o plano B das medidas complementares mais não seja que um anexo do plano A aprovado e articulado com Bruxelas, o que torna irrelevante a semântica da Comissão Europeia ou das oposições anémicas porque, depois deste mundo, novos mundos virão.
O problema é que quando este tipo de exemplos vêm ao de cima, não há volta a dar nas mudanças de comportamento cívico de que Portugal precisa para corrigir as injustiças, as desigualdades e os desequilíbrios que persistem, governo após governo. As manigâncias, as meias verdades e a falta de transparência nunca foram grandes motivos de inspiração das transformações, sobretudo nas sociedades modernas, em que a informação flui e contorna os garrotes.
Forma e falta de forma. O CDS elegeu Assunção Cristas como líder num congresso em que se deu muita atenção à forma. O PSD continua a revelar uma colossal falta de forma para acertar no registo de oposição, neste dito tempo novo.
Disforme. Pelo que se vai sabendo do Orçamento de Estado para o que resta de 2016, por proposta do PS, a dedução por filho no IRS será de 600 euros, ligeiramente superior ao dobro da dedução aprovada para despesas veterinárias com cães e gatos (250 euros), por proposta do PAN. Em 2014, Portugal foi o país com a menor fertilidade da Europa, nascendo apenas 82 mil crianças. Em 2016, para o fisco, um filho “vai valer” duas deduções de despesas veterinárias com cães e gatos.
Conforme à opacidade. Foi soprado numa reunião em Londres que a Galp vai fazer o primeiro furo exploratório de petróleo em Portugal este verão, a 80 quilómetros de Sines. Está tudo a correr tão bem, nada como desestabilizar a galinha dos ovos de ouro do turismo. Licenças que vêm de trás para perfurações ao largo do Algarve e do Alentejo. Não é a comédia “Há Petróleo no Beato”, mas a irresponsabilidade é de ir às lágrimas.
Forma de resistir. Em quatro anos, por impulso do dr. Pedro do Carmo, o município de Ourique e os criadores de porco de raça alentejana resgataram a fileira da decadência e demonstraram que é possível resistir à rota negativa do mundo rural e do interior com visão, qualidade e determinação. A Feira do Porco Alentejano, realizada no município de Ourique, liderado pelo presidente de câmara municipal mais jovem do país, Marcelo Guerreiro, entre 17 e 20 de março, é uma celebração da capacidade de resiliência dos baixo-alentejanos. Vale a pena testemunhar.
Membro da comissão política nacional do PS
Escreve à quinta-feira