Sida. “E a caspa? Também transmite  o vírus?”

Sida. “E a caspa? Também transmite o vírus?”


Há quase 20 anos a esclarecer dúvidas sobre a transmissão do VIH, Sérgio Luís já ouviu de tudo, até mesmo a pergunta que dá título a esta reportagem. Mas são as dúvidas que permanecem as mesmas que fazem com que o seu trabalho na Abraço dificilmente tenha um fim. 


Entram de rompante, meio aos encontrões e ainda com conversas penduradas. Embora o comportamento seja igual ao de todos os dias, desta vez a ideia não é dividirem-se por secretárias nem ficarem frente ao professor do costume. A próxima hora e meia é em versão auditório improvisado na biblioteca da Escola Secundária de Camões, com Sérgio Luís a assumir o lugar de porta-voz de uma matéria que tem tanto de teoria como de prática.

Com a experiência de quem faz isto há quase 20 anos, não atira de rompante a palavra “sida” para cima da mesa, mas aproveita as conversas de corredor para introduzir o tema. “Então, Catarina, não dás um beijo ao teu colega?” João reage: “Ainda vais mas é ter sida.” Todos se riem e Catarina bate na madeira de que é feita a cadeira onde está sentada. “Pronto, se bateste na madeira estás mais que protegida”, ironiza o único técnico da Abraço à frente das sessões de esclarecimento que a associação faz quase diariamente em escolas de todo o país.

Como introdução, nada melhor que explicar o que é a palavra que surge em destaque no painel que Sérgio traz sempre consigo. “Abraço”, diz pausadamente, “conhecem?” Alguns sins, uns mais tímidos que outros, que dão azo a que o técnico lidere a conversa. “Nasceu quando um rapaz de 29 anos chamado João Carlos descobriu que tinha o vírus, mas já num estado tão avançado que morreu dois meses depois.” Finalmente, a atenção está focada em quem fala e não nos telemóveis que teimam em espreitar do bolso. “O grupo de amigos de João Carlos”, continua Sérgio, “não quis que o apoio dado morresse também e associaram-se naquilo que hoje conhecemos como Abraço.” Apresentações feitas, passemos ao debate. “Aqui vale tudo, hã? Até bocas foleiras”, avisa.

Há quem esfregue as mãos de contentamento, mas é com uma pergunta séria que Mel dá início ao debate. “O vírus pode transmitir-se através de uma escova de dentes?” Está dado o mote para que Sérgio pegue no marcador preto e comece a desenhar. Aponta para um círculo preto pouco perfeito mas que serve para identificar o vírus. “Sabem quanto mede? No máximo, cem nanos.” Para quem já está a fazer contas de cabeça, aqui vai uma ajuda: um milímetro tem um milhão de nanos. “Acham mesmo que uma coisa deste tamanho sabe identificar uma escova de dentes, ou um piercing, ou até mesmo uma seringa?” A ironia serve para começar a enumerar os líquidos – esses sim – que podem ser transmissores. O sangue está em primeiro lugar, mas e em segundo? Há quem arrisque o suor, a saliva, mas a resposta certa vem de uma voz mais baixa. “Ouvi esperma?”, pergunta Sérgio. “Certíssimo.”

SEXO “Esperma”, “pénis” e “sexo oral” não são termos que estejam habituados a ouvir de uma forma tão descontraída, daí que agora não haja ruído do intervalo que distraia estas duas turmas do 11.o ano. Altura ideal para Sérgio pegar na mão em riste de Mariana, sentada na primeira fila, para exemplificar a barreira do látex. “Seja em forma de luva ou de preservativo.” E é mais uma vez recorrendo à ironia que fala do que é importante. “Faz algum sentido um médico parar a meio da operação para pôr as luvas e a bata? Então que lógica tem pararmos depois do roça-roça ou do sexo oral para pôr o preservativo?” Os risinhos são interrompidos por Mel, mais uma vez a salvar o pergunta-resposta que interessa. “Mas aí, os rapazes estão em vantagem, têm mais facilidade em proteger-se com o preservativo.” Como se estivesse à espera do momento certo para o fazer, Sérgio salta do lugar e começa a tirar aquilo que ajuda a encher o saco de papel para onde todos já tinham olhado pelo menos uma vez. “Primeiro, isso do feminino e masculino é marketing”, explica, “o que existe são preservativos, ponto.” Mesmo assim, apresenta aquele menos conhecido e que é designado, de facto, como “feminino”. Mais, com um x-ato corta-o de forma a funcionar como um bloqueador de fluidos que permite a prática de sexo oral feminino sem risco de contágio. “Isto porque não há ainda à venda em Portugal o produto específico para este efeito”, refere.

Profissão única Muitos risos, alguma vergonha, perguntas inteligentes, outras nem tanto, respostas dadas com ironia, outras com ar sério. Hora e meia depois, já há quem acuse ter chegado ao limite da atenção, com o cigarro do intervalo ou o whatsapp que ficou por responder a falar mais alto. “Quem quiser pode ir saindo”, começa Sérgio, sem que alguns lhe deem tempo sequer de terminar a frase e passem para a aula seguinte sem a mala cheia de preservativos e panfletos que distribui a quem ficou até ao fim.

“É engraçado como, mesmo depois de 20 anos, não há duas sessões iguais”, conta ao i, em tom de rescaldo. 
Atualmente, Sérgio é o único técnico da Abraço destacado para este trabalho, o que o obriga a uma gestão de tempo e viagens que, mesmo levando ao pormenor a organização, não o livra de uns bons quilómetros de estrada. “Este carro tem 12 anos e já fez 500 mil quilómetros”, salienta. Em termos oficiais, a Abraço dá uma ajuda nos números: são 40 mil quilómetros por ano para que pelo menos 11 mil pessoas tenham acesso às sessões de esclarecimento. “Apesar de ser cansativo, pelo menos sei que devo ter uma profissão única no país”, conta o animador juvenil com mestrado em Psicologia que começou na Abraço em 97 como estagiário, sem de lá nunca mais sair. “E não vejo um fim para este trabalho”, admite, “principalmente quando vejo que as dúvidas que me apresentam em 2016 são exatamente as mesmas das de há 20 anos.”

Uma das mais preocupantes continua a ser a confusão feita entre a probabilidade de engravidar e a de apanhar uma doença sexualmente transmissível. “A maioria acha, por exemplo, que fazer sexo anal sem proteção é seguro, e isso é muito grave.” O ar sério muda de tom quando se lembra de algumas perguntas que, de tão aparentemente disparatadas, servem agora de quebra-gelo quando apanha uma audiência mais difícil. “Chegaram a perguntar-me se a oleosidade do cabelo servia de transmissor do VIH”, conta, e não hesita em escolher a sua preferida. “Houve um rapaz que se virou para mim e disse: ‘E a caspa? Também transmite o vírus?”’