O BE tem defendido que o governo tenha uma voz mais firme na Europa. Como pode António Costa sair desta camisa-de-varas de Bruxelas?
Não pode ser subestimada a força de uma maioria política que foi eleita pelo povo. Essa é a base e é a força maior que tem António Costa para o diálogo com a Europa. A estratégia do governo anterior consistia nesse empobrecimento. Este governo recusa essa estratégia e tem o compromisso de que, diante de qualquer dificuldade, a resposta não passa por cortes salariais, por cortes nas pensões, por nova carga fiscal, seja nos rendimentos dos trabalhos e das pensões, seja nos bens essenciais.
Então nenhuma dessas coisas pode estar num plano B?
O governo deve assentar o diálogo com a Europa nesta força que traz de casa. Não desvalorizamos a pressão europeia, porque aprendemos ao longo destes anos com a forma como a periferia europeia e os países que foram mais atingidos pela crise financeira foram tratados e qual foi a estratégia da União Europeia para enfrentar estes problemas. Mas o governo português tem de ter na Europa uma condução que o possa elevar ao estatuto de proponente de alterações significativas no plano europeu, sem nunca entrar em conflito com o que é o seu mandato.
À direita dá-se muitas vezes o exemplo do Syriza. Foi traumático para o BE e para a esquerda europeia o que lhe aconteceu?
O discurso da direita é extraordinariamente cínico em relação à Grécia. O memorando que foi imposto em junho passado ao governo grego é hoje apresentado como a prova de um fracasso na Grécia. Mas se nos lembrarmos da cimeira de junho, era Passos Coelho quem se apresentava à imprensa dizendo que eram ideias suas as que estavam no memorando e que era aquilo a solução para os problemas da Grécia. Ora, não se pode ser o autor da solução para os problemas e dizer que a Grécia é um fracasso. A direita colaborou ativamente para sabotar qualquer possibilidade de um desfecho que fosse diferente daquele a que se chegou. É certo que o desfecho da crise grega é uma derrota para o governo grego. Não há dúvida nenhuma sobre isso. E o memorando grego é uma continuação da política de austeridade.
Como se evita um resultado igual ao do Syriza?
Portugal tem de saber se aceita uma condenação perpétua em termos de política de austeridade ou se está disposto a conduzir um processo, que será sempre diferente de qualquer outro…
Portanto, não querem essa comparação com o Syriza…
O governo português tem de ter aprendido com o que se passou na Grécia. Ninguém pode passar ao lado desse balanço. Mas do que estamos a falar é de um critério político estrito. Ou o governo assina por baixo a inviabilidade do país e, nesse caso, qualquer governo que venha terá sempre o mesmo estatuto de representantes do senhor Schäuble… ou tem outra atitude. O governo português, ao apresentar um Orçamento de rutura com um ciclo de empobrecimento, está a abrir uma janela de esperança.
E a pressão do défice?
As obsessões de Bruxelas não são as décimas do défice. As décimas do défice são os argumentos que surgem na ocasião política. O que é insuportável para Bruxelas é que em Portugal se aumente o salário mínimo, se reponham os salários que foram cortados na função pública, se recuse baixar a contribuição dos patrões para a Segurança Social. É sobre essas matérias que se irá falar no Programa Nacional de Reformas. As medidas que são as mais importantes do ponto de vista da dignidade das pessoas são as primeiras que vão ser atacadas por Bruxelas.
Como vê Costa a lidar com essa pressão?
A forma como António Costa vai gerir esse processo compete-lhe a ele. Da parte do BE, o que posso dizer é que, para fazer esse confronto e para defender as pessoas, em Portugal conta com uma maioria no parlamento. O BE não vai faltar sempre que estiver em causa impedir o regresso da austeridade e do ciclo de empobrecimento.
Quais foram os contributos do BE para melhorar este Orçamento?
Uma medida muito importante é a da tarifa social da energia. O dispositivo que o BE agora propôs de acesso automático à tarifa social para todas as pessoas com rendimentos abaixo dos 5800 euros anuais mais 50% por cada dependente sem rendimentos ou beneficiárias de prestações por comprovada situação de pobreza vem restabelecer uma certa normalidade e transparência na relação entre o Estado e uma empresa que se habituou, ao longo dos anos, a viver com lucros exorbitantes numa situação de privilégio.
Quantos portugueses vão pagar menos na conta da luz graças a isso?
Um milhão de portugueses. A medida atingia 100 mil agregados familiares e vai passar a atingir, pelo menos, um milhão. A metade mais pobre deste milhão de famílias vai beneficiar ainda de uma redução da contribuição audiovisual, que passa de 2,85 euros para um euro. E depois ainda há a tarifa social do gás. A poupança deverá andar entre os 110 e os 130 euros por ano.
Este governo é de esquerda?
Este governo é do PS. O PS define-se a si próprio como um partido do centro. E, portanto, este será um governo do centro apoiado pela esquerda.
Começaram por estes dias as manifestações nas ruas. Acabou o estado de graça do governo?
Estes protestos significam que Portugal enfrenta problemas muitíssimo graves do ponto de vista da sua inserção na Europa e da precarização das relações sociais. A única maneira de sair do declínio em que o país se encontrou nos últimos anos é uma mobilização forte na sociedade. Que haja setores sociais que se expressam e que reivindicam é a condição indispensável para que este governo tenha a força e o impulso, do lado de cá, para enfrentar as pressões gigantescas que vai sofrer do lado de Bruxelas.
Faz sentido usar a palavra “geringonça”?
A palavra “geringonça” foi popularizada por Paulo Portas, mas eu tenho uma especial simpatia por ela porque uma geringonça é um mecanismo complexo que funciona. E eu penso que o país está assistir ao funcionamento de um mecanismo político que implica um grande trabalho, muito complexo e difícil e articulado, diário, mas que tem funcionado.
Quando vai haver conclusões do grupo de trabalho sobre a sustentabilidade da dívida?
Antes do verão.
Que conclusão pode sair daí?
O BE há muito tempo que defende que, sem a renegociação da dívida, os problemas mais profundos e mais urgentes que há no país não vão ser respondidos. Porque a disponibilidade orçamental para o investimento público que é necessário não se consegue com um serviço da dívida como aquele que está hoje a ser praticado. A obrigação de qualquer partido que esteja empenhado numa solução política é colocar essa questão no debate. Isso é o mínimo que se pode exigir. O que vamos fazer é isso. E procurar encontrar as perspetivas de ação política para responder ao problema da negociação da dívida.
O que acontece se o PS achar que não é viável renegociar a dívida?
O grupo de trabalho ainda não começou. Estamos a começar esse trabalho com o máximo empenho. Sabemos que temos do outro lado da mesa gente profundamente preparada e conhecedora da gravidade da situação da dívida pública.
Um desentendimento entre o BE e o PS – por exemplo, na dívida ou no Novo Banco – leva necessariamente à queda da geringonça?
O acordo com o PS tem em vista encerrar o ciclo de empobrecimento e declínio do país. Sempre que o BE verificar que é nesse sentido que vão as medidas que o governo toma, vai contribuir para que este governo tenha apoio maioritário no parlamento. Perante qualquer situação extraordinária, temos como critério que não se dá nem um passo atrás.
Há a ideia de que não há grande diálogo com o PCP. Porquê?
As diferenças concretas da condução política do processo que levou ao estabelecimento do acordo com o PCP e até, posteriormente, na negociação das medidas para o Orçamento do Estado são conhecidas. Agora, o BE e o PCP têm uma colaboração de muitos anos no parlamento. E do ponto de vista da política económica e social, grandes afinidades e grandes convergências. Não surpreende que não encontremos na atual fase política linhas de choque entre os dois partidos. O que seria de espantar era se se instalasse uma dinâmica de competição entre os dois partidos.
Mas há competição. E ainda esta semana Sérgio Sousa Pinto disse que o BE “não vai descansar enquanto não ocupar o espaço do PS”. O crescimento eleitoral do BE é visto como concorrência à esquerda?
O BE mostrou, e os resultados eleitorais comprovaram, que foi sempre, e hoje mais do que nunca, uma força ativa e disponível para encontrar soluções a favor da maioria da população e daqueles que têm vindo a ser prejudicados pelo modelo de desenvolvimento português e, em particular, pelas políticas de austeridade. O que as últimas eleições mostraram é que há uma compreensão nova dessa disponibilidade e dessa força, e essa compreensão que se gerou a partir dos anos da austeridade e do julgamento da resposta que o PS deu, tão insuficiente, nestas últimas eleições foi o que permitiu a confiança que foi dada ao BE.
Acha que o BE ainda pode crescer mais?
Eu julgo que o resultado da Marisa Matias nas presidenciais traduz uma avaliação que está a ser feita a cada dia sobre a forma como o mandato do BE está a ser cumprido. Quem arriscou no BE em outubro achou que valeu a pena em janeiro. E isso demonstra que há um espaço político novo na esquerda que se está a abrir para uma política diferente da alternância. Uma das consequências disto é que o voto útil na esquerda morreu.
O BE percebeu que ofendeu algumas pessoas com o cartaz que dizia que Jesus tinha dois pais para defender a adoção gay?
O cartaz criou uma incompreensão que foi bastante ampla, não foi bem concebido e, por isso, foi retirado. Continuo a pensar que a ironia e o humor têm lugar na crítica política e não aceito que haja tabus no humor. Portanto, não é essa a lição que tiramos deste processo. Mas quando não se tem graça, o melhor é reconhecê-lo.
“Para manter a Caixa Geral de Depósitos pública, Costa vai entrar em conflito com Bruxelas”