Lá estava o nome dele como um intruso entre os 13 semifinalistas do Prémio Man Booker Internacional – Raduan Nassar, o brasileiro de origem libanesa que há trinta anos não publica um novo livro, disse adeus, virou costas à literatura e dedicou-se à agricultura. Garante que, desde então, nem mais tentado se sentiu a acrescentar outra frase há sua brevíssima obra em títulos – dois livros apenas –, esmagadora no seu modo de coser assombro a cada frase, expandi-la como o gesto resoluto de uma mão que atirasse pedaços do próprio corpo, das suas vivências para alimentar uma vontade indómita, uma escrita que se embesta, numa selvajaria que cai na página em pontas, avança com uma elegância e uma precisão dignas de um ballet clássico.
Quando a notícia circulou nos jornais portugueses, Raduan passou na sombra do outro autor de língua portuguesa contemplado pela longlist do prémio literário britânico que consagra o que de melhor chega àquela língua na ficção a nível mundial. O escritor angolano José Eduardo Agualusa mereceu o destaque, o que não se estranha, e talvez se possa dizer que bate certo e afinado com a música de elevador no sobe e desce da cotação dos valores nos mercados literários.
Celebradíssimo, Agualusa tem os seus livros traduzidos em 25 idiomas, enquanto Raduan vai tão longe no seu desdém pela necessidade de aplausos, o “lado narcisista” da literatura, que chega ao ponto de levantar obstáculos à divulgação da sua obra mundo fora. Em 2015, a prestigiadíssima colecção Penguin Contemporary Classics passou a contar com os seus solitários romance “Lavoura Arcaica” (1975) e novela “Um Copo de Cólera” (1978). É apenas o terceiro autor brasileiro a integrar o catálogo dos clássicos modernos, mas o editor de Raduan, Luis Schwarcz, diretor do grupo Companhia das Letras, rindo-se, lembra que ele “tentou boicotar de toda a forma as edições. Reclamava da capa, do contrato… Ainda dizia: ‘Quando sair eu não vou estar mais nem aqui.’ E eu respondia: ‘Então por que você está se preocupando?’”
Agualusa foi escolhido pela obra “Teoria Geral do Esquecimento” (D. Quixote, 2012), que já lhe valeu em Portugal o Prémio Fernando Namora, em 2013. E esta nem é a sua primeira vez mas a segunda nomeação para o Man Booker International (a primeira foi em 2007). Raduan Nassar integra a lista com “Um Copo de Cólera”. Naquela que é a mais longa lista de sempre do prémio, incluem-se ainda Elena Ferrante (Itália), Han Kang (Coreia do Sul), Maylis de Kerangal (França); Eka Kurniawan (Indonésia); Yan Lianke (China); Fiston Mwanza Mujila (República Democrática do Congo); Marie NDiaye (França); Kenzaburo Oe (Japão); Aki Ollikainen (Finlândia); Orhan Pamuk (Turquia) e Robert Seethaler (Áustria).
“Pouco se me dá se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.” Esta frase hoje sabe a prenúncio, um recado deixado pelo narrador do conto “O Ventre Seco”, um dos cinco textos reunidos no volume “Menina a Caminho”, que saiu em 1997 no Brasil, mais de uma década depois de Raduan ter anunciado que a literatura já não lhe interessava, preferindo a agricultura e a criação de coelhos na sua fazenda de Lagoa do Sino, a três horas de carro de São Paulo.
Há um natural fascínio hoje por aqueles escritores que se desinteressam da deificação promovida pelo consumo de massas, esse fenómeno que o jornalista Paulo Roberto Pires classificou como “toda uma liturgia que cerca a literatura”, uma encenação que acaba por servir-se dela como mero pretexto para finalmente bani-la e instalar no seu lugar a “verborragia”. Num artigo publicado na “Folha de S. Paulo” no final do ano passado, por ocasião do 80º aniversário de Raduan, o jornalista assinalava como a recusa de um dos “mais importantes prosadores da língua em todos os tempos” em subir à cena, ser alvo da homenagem e ceder “à tentação da tagaralice”, participando num meio literário cada vez mais alinhado com a lógica de espectáculo, é algo que paira incomodamente sobre a literatura brasileira.
Esta análise vai mais longe, e lança luz sobre o interesse crescente pelos escritores reclusos, aqueles que não se ficam pela denúncia da orientação para o espectáculo da cultura de massas, mas renunciam a ela. Contudo, o jornalista coloca Raduan numa categoria só dele no que toca ao “figurino do ‘escritor recluso’”, uma vez que, ao contrário de outros escritores como os brasileiros Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, ou outra das semifinalistas do Man Booker Internacional, Elena Ferrante, este é “irredutível” na sua recusa e não manobra a atenção do público, não “mantém com jornalistas e leitores um esconde-esconde que, no fim das contas, tensiona o arco da curiosidade”. A grande diferença não é só, como nota Roberto Pires, o facto de tantos destes escritores, gerirem o seu silêncio de forma tal que muitas vezes acabam por alimentar “as intrigas provincianas” e um certo furor do público que adquire laivos voyeuristas, enquanto vão produzindo novos livros. Ao contrário de um JD Salinger, Raduan continua a receber visitas, até tradutores e admiradores dos seus livros, simplesmente tem muitos assuntos à frente da literatura na sua lista de temas preferenciais para possibilitar uma boa conversa.
De resto, no Brasil tiveram bastante eco através do trabalho de ensaio e tradução de Augusto de Campos – nomeadamente com o volume “Poesia da Recusa” –, as palavras de Valéry sobre o trabalho de Mallarmé: “O trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por recusas. Pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. […] O rigor das recusas, a quantidade das soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência, a quantidade do orgulho e, também, os pudores e os diversos temores que se pode sentir com relação aos julgamentos futuros do público. É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética”.
Ao virar costas à literatura, Raduan – que entretanto viu os seus dois livros serem adaptados com sucesso ao cinema: “Um Copo de Cólera” em 1999, por Aluizio Abranches, e “Lavoura Arcaica” em 2001, por Luiz Fernando Carvalho –, conquista a admiração de sucessivas gerações de leitores e torna-se até uma figura tutelar entre os escritores mais novos, porque “da cólera ao silêncio” a obra deste autor encerra-se em si mesma e alheia-se do barulho, do burburinho literário, mantendo-se impermeável a ele. O sentido ético que dela emerge vem não apenas da noção clara de que quem a escreveu não deixou que o orgulho e a vaidade fossem os estímulos a manter acesa a luz no quarto onde antes escreveu sujeito à graça de um “tempo de paixão pela literatura”, mas que há uma qualidade e um investimento de tal ordem que se percebe que esta escrita procura esgotar as suas possibilidades, explorando um estilo em que toda a sofisticação é erigida na mais estreita cumplicidade com o foco da acção. Ele ergue narrativas que contam com fabulosas infiltrações, arroubos líricos, passagens que exibem um glorioso deleite na manipulação das propriedades plásticas, sonoras e rítmicas da língua, num vigoroso balanço que busca o limite de tensão em arrebatadoras proezas descritivas que sondam não apenas a natureza e a ambiência rural, mas capturam estados emocionais complexos desencadeando-os no leitor. Uma escrita capaz de reflectir o mundo e recriá-lo, arrombando a porta entre exterior e interior, afectando tudo. Sopesando cada palavra, esta escrita empenha-se em fazer funcionar o eco genesíaco e as cadeias de sentidos que as palavras arrastam, as suas possibilidades lúdicas. É, assim, uma escrita investida no máximo prazer que se pode tirar de uma frase, de um pensamento, capaz de segurar o tempo, de o sombrear… “marcando o silêncio com rigor, estava ali o nosso antigo relógio de parede trabalhando criteriosamente cada instante”…
Esta é uma obra tão mais exemplar quanto se percebe que nela o escritor se aplicou de forma inteira e absoluta, uma obra que contém em si todas as ambições e pode por isso prescindir da ambição de alcançar um vasto público, indo para além do orgulho, como Mallarmé queria que os poetas fossem, tornando-se desdenhosa.