Kabir. Quando a poesia se torna o rumor de uma vida que deu lugar à lenda

Kabir. Quando a poesia se torna o rumor de uma vida que deu lugar à lenda


Pela mão embalada mas rigorosa do poeta Jorge Sousa Braga, chegam à língua portuguesa as versões de 63 poemas de um poeta místico da Índia medieval, breves composições que no seu influente percurso no Ocidente, a partir do século XX, inspiraram gerações de leitores e seduziram grandes poetas como W.B. Yeats, Ezra Pound ou Czeslaw…


Jorge Sousa Braga tem traduzido uma imensidade de poemas dos mais diversos autores e de várias tradições ou línguas, ainda que o faça sobretudo a partir do inglês, consultando versões noutras línguas como o espanhol ou o francês. Ele mesmo poeta, as suas versões de outros confluem com a sua obra, que parece aspirar ao estonteante afluente que tem feito correr para esta língua, e as suas escolhas denotam antes de tudo um admirável sentido estético, a poesia como uma arte que, nas suas reinterpretações, através do imparável movimento consegue reflorir nas mais acidentadas geografias, reencarnar através dos tempos com a sua força de sugestão e encanto modelada pelos sentidos afinados para a sensibilidade de cada época. Com os 63 poemas do poeta-santo indiano Kabir, Sousa Braga continua a erguer um impressionante altar e a ter uma influência importante para que se perceba hoje de novo entre nós que não são os poetas enquanto legisladores secretos do mundo os protagonistas mas esses momentos de trabalho inspirado que conseguem vingar, e se vingam primeiramente daquilo que lhes deu origem, separando-se da mão, da circunstância, do tempo, adquirindo um gosto de mito, uma simples frase às vezes que é o suficiente para pingar ainda séculos mais tarde e iluminar, preenchendo a mente com o poder de uma fragrância, um espírito que nesse momento aprende a “caminhar sem pés ver sem olhos/ ouvir sem ouvidos beber sem lábios”…

 

Jorge Sousa Braga

 

Trago no coração
aquele que me faz viver
neste mundo uma vida sem limites
Assim vive o lótus na água e na água floresce
embora a água não possa tocar as suas pétalas
Difícil é cruzar o oceano
tão profundas são as suas águas
Poucos são os que conseguem
chegar à outra margem


Conta-me ó cisne a tua história
de onde vens em que lago
vais descansar?
O que procura o teu coração?
Acorda e segue-me esta manhã
Há um país onde não existe
o terror da morte
as árvores estão sempre em flor
e a brisa traz um perfume delicado
O coração qual abelha
penetra nessas flores
sem aspirar a outro prazer

 

"O Nome Daquele que Não Tem Nome"
de Kabir, com tradução de Jorge Sousa Braga
colecção Gato Maltês, Assírio & Alvim
96 páginas, 7,70€

Sinopse

Foi Tagore (com a assistência de Evelyn Underhill) quem efectuou a primeira tradução dos poemas de Kabir para uma língua ocidental (1914). Trata-se já de uma tradução em segunda mão, feita a partir da tradução do hindi para bengali de K. M. Sen. Dizia John Stratton Halley que «as traduções são como rios — as suas nascentes muitas vezes escondidas e os seus destinos potencialmente oceânicos». Essa tradução encontrou eco de imediato em Yeats e em muitos outros poetas. Não será alheio ao sucesso que esses poemas encontraram no ocidente, o facto de terem sido traduzidos por um poeta com a qualidade de Tagore. As «Songs of Kabir» serviram de base (e continuam a servir) para outras traduções e recriações nas mais diversas línguas (entre elas as de Robert Bly, André Gide e Czeslaw Milosz). Também Ezra Pound sucumbiu ao encanto de Kabir (há dez poemas seus nas «Translations», embora a fonte não tenha sido Tagore). Mais recentemente surgiram traduções académicas, entre as quais convém assinalar as de Charlotte Vaudeville («Au cabaret de l'amour»), de Linda Hess («The Bijak of Kabir») e a de V.K. Sethi («Kabir — the Weaver of God's Name». As traduções apresentadas neste livro beberam de várias fontes (sendo também a principal a de Tagore).

Pouco se sabe sobre a vida de Kabir, para além do que deixam adivinhar os seus poemas, as hagiografias e as lendas. Terá vivido em Varanasi (Benares), o mais sagrado dos lugares sagrados hindus e simultaneamente um centro de comércio e peregrinação, na primeira metade do século XV. Nascido de uma viúva brâmane e adoptado por uma família da casta dos tecelões, convertida à fé islâmica, Kabir revela nos seus poemas um profundo conhecimento quer do hinduísmo quer do islamismo (e dentro deste do sufismo). De Varanasi, uma cidade que prometia a salvação a todos os que nela morressem, ter-se-á retirado no fim da vida para uma obscura cidade chamada Magahar.
A vida de Kabir confunde-se com a lenda. Desses episódios lendários da vida de Kabir há especialmente dois que gostaria que tivessem sido reais: o primeiro é o do encontro entre Kabir e Mirabai. O segundo tem a ver com a sua morte: hindus e muçulmanos teriam disputado o seu corpo, uns para cremá-lo, outros para enterrá-lo. Quando abriram o caixão, o que restava de Kabir era uma coroa de flores, que hindus e muçulmanos dividiram entre si.

Jorge Sousa Braga, na Introdução