Situado na esquina entre a rua Ferreira Borges e a Saraiva de Carvalho e no meio de várias construções imponentes, o edifício desta pastelaria é o que mais ‘enche a vista’ – desenhada pelo arquiteto suíço Ernesto Korrodi, em 1912, a fachada da Tentadora destaca-se pela sua ornamentação naturalista e curvilínea, uma característica da Arte Nova.
Com o passar dos anos, o estabelecimento foi solidificando o seu lugar enquanto espaço histórico da cidade de Lisboa – são muitos os clientes que por ali passam há décadas. E alguns empregados também lá estão há uns bons anos: O senhor Isidro Graça trabalha há 54 anos na Tentadora e já serviu milhares de pessoas. “Este é um bairro maravilhoso. Passam aqui pessoas mais velhas, mas também muitos jovens, principalmente os que andam nas escolas aqui das redondezas”, disse ao i.
A memória às vezes atraiçoa. Apesar de ter nascido pouco tempo depois da implantação da República e de se situar num dos bairros com mais ligações a este regime político – foi em Campo de Ourique que começou o movimento revolucionário e, ainda hoje, muitas das suas ruas têm nomes de republicanos – a Tentadora guarda poucas memórias desta altura. O edifício em que está instalada ilustra (e de uma forma exemplar) os anos em que foi inaugurada, mas os acontecimentos ali vividos, as pessoas que ali tomaram o seu café e as histórias ali contadas acabaram por se perder. Os registos vão desaparecendo e os testemunhos de quem ali passava também, caindo no esquecimento parte da sua história.
Mas basta avançar duas décadas para começarem a surgir lembranças do que acontecia na Tentadora. Durante o Estado Novo, a pastelaria era frequentada por pessoas mais ligadas ao regime. “As pessoas não vinham para aqui falar sobre o que se passava. Muitas senhoras vinham conversar sobre o dia-a-dia e o que se passava no bairro, mas não se falava sobre política”, recorda o senhor Isidro, na altura com os seus 20 anos.
No entanto, esta pastelaria não era frequentada apenas por simpatizantes de Salazar ou por meros espetadores. Em 1969, é fundado o Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral (MDP / CDE), uma organização política de oposição ao regime. Muitos dos seus membros escolheram este estabelecimento como local de lazer. “[A Tentadora] Era frequentada por várias pessoas do MPD/CDE, como José Manuel Tengarrinha [atualmente no partido LIVRE] e outros”, conta ao i o Sr. Isidro.
Com o 25 de Abril, a Tentadora sentiu uma quebra súbita na clientela. “Muitas das pessoas que vinham aqui com frequência tiveram de fugir à pressa para o Brasil, como medo do que aí vinha. Isso fez com que, logo nos primeiros dias a seguir à revolução, sentíssemos uma diminuição no número de pessoas que vinham à Tentadora e nas vendas”, explica o funcionário mais antigo desta casa.
Os clientes confidentes. Mas o tempo acabou por devolver os clientes à Tentadora e esta voltou a ter o movimento ‘do antigamente’. Com a população do bairro e os transeuntes que gostam de o explorar, regressaram também os nomes mais ilustres de várias áreas da sociedade. “Jorge Borges de Macedo [historiador e professor universitário], Jorge Sampaio, Augusto Pereira Brandão [arquiteto e antigo diretor da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa] e Braga de Macedo [ministro das Finanças no Governo de Cavaco Silva e filho de Borges de Macedo] são algumas das individualidades que por aqui passaram com frequência”, revela o Sr. Isidro. No mundo das artes, Fialho Gouveia, Nicolau Breyner e João d’Ávila são os nomes que saltam à memória de quem por ali anda há vários anos.
Uma das pessoas que continua a frequentar esta pastelaria com assiduidade é Miguel Sousa Tavares. “Passa pela Tentadora todos os dias, só não vem aqui se estiver no estrangeiro”, diz ao i Hermínio Martins, um dos sócios do estabelecimento. “É uma pessoa maravilhosa, até já me ajudou a resolver problemas familiares. Deu-me conselhos e explicou-me com quem devia falar. Indicou-me alguns nomes e ajudou-me muito. Foi a minha salvação”, acrescenta o Sr. Isidro.
Camões escreveu:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades”.
Versos que continuam (e vão continuar) a ser atuais, mas que, por mais estranho que possa parecer a muitos, não se aplicam à Tentadora. Os tempos mudaram, sim, mas a vontade dos clientes continua a ser soberana, a essência desta pastelaria manteve-se ao longo de mais de 100 anos e existe uma relação cada vez mais sólida com quem continua a comer o seu pastel de nata naquela esplanada virada para a Ferreira Borges. O Sr. Isidro é o exemplo de tudo isto: os 20 anos lá vão, está nos 74, mas continua a servir os seus clientes com o mesmo afinco – “Esta é a minha família. Espero continuar a trabalhar para e com ela durante muitos mais anos”.