Literatura não passa de uma palavra chique para a escrita.” Esta frase encerrava um artigo de Philip Gourevitch publicado na revista norte-americana “The New Yorker” e no qual, um ano antes da atribuição do Nobel da Literatura a Svetlana Alexievich, defendia que estava na hora de a Academia Sueca reverter o “ignóbil” tratamento que lhe tem merecido a categoria da não ficção. Tão vaga quanto penumbrosa, é uma categoria para a qual foram relegadas muitas das melhores páginas que se escreveram nas últimas décadas e que, por qualquer motivo, não pareciam estar à altura daquelas obras que garantem a distância que, supostamente, envolve a entrada em cena da fantasia e da imaginação.
Mas, como lembrava Gourevitch, cada registo implica certas exigências formais e, se para a escrita que não ficciona isso significa uma fidelidade face a uma realidade documentada, a melhor literatura não pode prescindir da imaginação para o conseguir, do mesmo modo que um romancista, um dramaturgo ou um poeta o faz para retratar a sua visão. E é curioso que estes o façam tantas vezes apagando mal o rasto ou nem se preocupando em elidir as pistas e reclamar uma natureza puramente ficcional dos seus universos. Afinal, se de uma obra se dissesse que realizou um plágio da realidade, isso não seria desde logo elogiá-la. Como seria possível fazê-lo através de um inventivo e até fabuloso mecanismo de captura da realidade. Porque não há possibilidade de tradução simples e direta. Não é sempre necessário montar um paralelo, apenas com palavras investi-lo das condições que possam representar um drama, fazendo deflagrar a tensão e emoções próprias de um ambiente que se sinta real.
Gourevitch fala de um “persistente snobismo” no mundo literário que tem impedido comparações entre os autores de não ficção e os ficcionistas, e denuncia como a divisão da escrita em categorias e géneros para julgar da sua relevância é algo que contraria o espírito da melhor literatura, aquela que procura oferecer “um eco à vida e à morte através de uma escrita que – pela sua voz e substância, a sua alma e urgência, a sua verdade e, acima de tudo, a sua sabedoria – amplie a nossa compreensão e experiência do nosso mundo e da nossa existência”.
Um novo género literário É precisamente à obra de Svetlana Alexievich que recorre para mostrar a enorme injustiça deste desdém pela literatura de não ficção, e é interessante notar como a Academia Sueca correspondeu a este apelo, distinguindo a obra da escritora bielorrussa que inventou “um novo género literário”, o qual “funde literatura e jornalismo”, criando “uma história das emoções, uma história da alma”. Não se pode passar ao lado da questão processual na obra desta autora. E a atribuição do Nobel a Alexievich assume uma profunda relevância para um prémio que vinha perdendo algum do seu prestígio e influência, podendo dizer–se que a distinção da sua obra marca uma renovação do papel político e interventivo da Academia Sueca. Ao dirigir as atenções do mundo sobre uma escritora que trabalha exclusivamente para amplificar os testemunhos de pessoas vivas, Estocolmo dá um passo firme no sentido de abrir caminho e valorizar os géneros literários que lidam diretamente com a realidade, essa nebulosa matéria em que os factos importam, em que a perspetiva e a abordagem assumem sempre um caráter controverso, em que não há como fugir ao confronto. Os livros de Alexievich lidam todos com crises históricas – a ii Guerra Mundial, a guerra soviética no Afeganistão, o desastre nuclear de Chernobyl e o colapso da União Soviética – através das vozes de pessoas comuns.
Processo de afinação Desenvolveu o processo que mantém até hoje por volta de 1980, quando trabalhava como jornalista e percebeu que não conseguia simplesmente tirar notas à mão enquanto fazia entrevistas. Sentia a necessidade de preservar cada palavra que lhe era dita, incluindo os silêncios. “Quando as pessoas falam, é importante a forma como organizam as palavras umas em relação com as outras”, disse numa entrevista. Naqueles dias, um gravador na Bielorrússia custava cerca de 500 rublos, cerca de três meses de salário, e ela pediu o dinheiro emprestado a escritores mais velhos, alguns dos quais tinham tido influência na sua forma de capturar a realidade. Começou então a gravar as conversas, a transcrevê-las; depois escrevia a partir destes testemunhos, muitas vezes ensaiando em voz alta os monólogos, “para testar a afinação e a unidade do discurso”, como assinala o jornalista Paulo Moura no prefácio que assina na edição de “Vozes de Chernobyl” – que acaba de chegar às livrarias portuguesas com o selo da Elsinore. Assim, Alexievich foi “limando, abreviando, simplificando, até encontrar uma voz coerente entre as múltiplas vozes – a sua voz autoral”. Trabalha em cada livro entre cinco e dez anos e estes representam os testemunhos de entre 300 a 500 entrevistados, mas são selecionadas cerca de 100 vozes, das quais entre 10 e 20 são aquelas a que chama os “pilares”, ou seja, aquelas pessoas que chega a entrevistar 20 vezes. De cada entrevista, cuja transcrição preenchia entre 100 e 150 páginas, usou em média dez.
Imersos na banalidade “A inovação de Alexievich foi retirar do texto todas as ruminações, cronologias e contextualizações. Considerou que a voz do autor não era, simplesmente, necessária. Deve permanecer nos bastidores, fazendo as perguntas certas, escolhendo as personagens mais interessantes, juntando as frases mais ricas. E apagar-se das páginas”, lê-se no prefácio de Paulo Moura. Sendo a primeira pessoa a receber o Nobel por livros inteiramente construídos a partir de entrevistas, isso levou alguns escritores a elogiarem a Academia por reconhecer o trabalho de uma jornalista. Mas para Alexievich a ideia de que aquilo que escreve possa ser confundido com jornalismo é quase um insulto. “Sabia, desde os cinco anos, que queria ser escritora, não jornalista”, disse. No mundo editorial russófono, a linha entre ficção e não ficção é bastante ténue, e os seus livros tendem a ser classificados simplesmente como “prosa”, arrumados nos catálogos e nas livrarias com os romances literários. E não é por snobismo que Alexievich não gosta que a considerem uma jornalista; simplesmente, a fronteira entre jornalismo e literatura é inviolável na cultura em que cresceu. A atividade jornalística é aquela que se dedica a informar. Como refere Paulo Moura, “antes de aperfeiçoar o género que agora a caracteriza, Alexievich experimentou, ensaiou, arriscou. Escreveu peças de teatro e poesia, realizou documentários. Para chegar à realidade, fez o percurso de um artista”.
De resto, quando foi entrevistada pela “New Yorker”, a jornalista Masha Gessen notou o desdém com que Alexievich usa a palavra “informação”, o tipo de desdém que outro bielorrusso reservaria para uma palavra como “capitalismo”. Mas é aí que reside o aspeto essencial da obra desta escritora. O seu percurso é ilustrativo de alguém que investiga os meios, géneros e processos de escrita para “criar um novo texto”. O seu m tor foi o o escritor bielorrusso Ales Adamovitch, que desenvolveu um estilo influenciado pela tradição oral russa e para o qual usou várias designações, como “romance coletivo”, “romance oratório”, “romance testemunhal” e “coro épico”. Numa entrevista, Alexievich explicou aquilo que tem procurado construir: “Tenho buscado um método literário que permita a maior proximidade possível com a vida real. A realidade sempre me atraiu, como um íman. Torturava-me, hipnotizava-me. Queria capturá-la no papel. Assim, apropriei-me logo que pude deste género de vozes reais e confissões, provas testemunhais e documentos. É assim que eu oiço e vejo o mundo – como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes quotidianos. (…) Desta forma consigo ocupar simultaneamente as funções de escritor, repórter, sociólogo, psicólogo e padre.”
Décadas de dedicação E se, como notava a nova secretária da Academia Sueca, Sara Danius, que sucedeu em junho a Peter Englund, Alexievich dedicou os últimos 30 ou 40 anos da sua vida a fazer o mapeamento das transformações a que esteve sujeita a sua geração, a dos indivíduos que viveram o desabamento da maior utopia de sempre, o empenho desta obra tem um significado que afeta a própria forma como hoje pensamos coletivamente a realidade. Para ela, a informação governa hoje o mundo, mas não passa de outra ficção sem nenhum valor. “Simplesmente não acredito que ‘os factos novos’ possam ajudar-nos a compreender seja o que for”, disse na entrevista a Masha Gessen, referindo-se à torrente de livros que têm sido publicados sobre a Rússia e a ex-União Soviética. Muitas vezes, nos seus livros não inclui mais do que o nome, idade e profissão das pessoas que entrevistou. E inclui essas informações apenas porque entende que expressam “a medida do nosso tempo na terra” e “o ângulo pelo qual observamos a vida”.
“Nós vivemos imersos num ambiente de banalidade. Para a maioria das pessoas, isso é o bastante. Mas como vais para além disso? Como é que arrancas essa cortina de banalidade? Tens de fazer as pessoas descer às profundezas de si mesmas”, disse na mesma entrevista.
Há dez anos, no festival literário nova–iorquino PEN World Voices, Alexievich falou do seu trabalho como um esforço para representar as novas condições humanas. Mencionou Chernobyl a par da destruição das Torres Gémeas, e afirmou que se vive hoje uma “nova era”. “Aquilo que estamos a viver não apenas ultrapassa aquilo que conhecemos como excede a nossa capacidade de imaginar. As coisas que nos estão a acontecer hoje em dia são inacreditáveis – a mente humana é incapaz de abarcá-las –, elas acontecem a uma velocidade incrível.”
Se a obra desta escritora nos lança numa espiral vertiginosa em que, desde logo, furamos a superfície das histórias que julgávamos conhecer e mergulhamos na tempestade da experiência de quem viveu as horas de um horror que nos desanca, mais fantástico e perturbador do que qualquer obra de ficção, se os testemunhos nos atingem e nos desorientam, com uma sensação violenta de despertar, lendo entre lágrimas, se um livro como “Vozes de Chernobyl” nos leva perante uma realidade que esmaga a nossa imaginação, o certo é que a escrita de Alexievich coloca em crise todo o processo de representação do mundo e acaba por ser a mais veemente denúncia desta sociedade da informação, atordoada por uma trama de pequenos factos e ficções que bloqueiam a experiência do que ocorre à nossa volta e a consciência daquilo que se passa longe de nós.
“Interessam-me as experiências humanas” “Comecei a perceber que o que ouvia as pessoas dizerem nas ruas e no meio da multidão capturava de forma muito mais eficaz o que estava a acontecer do que aquilo que eu lia. (…) A mim interessam-me as experiências humanas, a dor humana”, disse noutra entrevista. E deu como exemplo aquilo que viu ao chegar a Chernobyl, após o desastre nuclear: “Um polícia acompanha uma mulher que carrega uma cesta de ovos. Caminha a seu lado para se assegurar de que ela enterra os ovos no chão porque estes estão radioativos. Eles enterram o leite, a carne. Milhares de soldados arrancam a camada superior do solo, que tinha ficado contaminada, e enterram-na. Eles levantam a terra e enterram-na mais fundo na terra. E, enquanto isto se passa, todos os que se viram envolvidos nesta situação tornam-se filósofos porque não havia nada no nosso passado que nos servisse de exemplo para lidar com aquilo.”