Maria Vieira e o mundo português


Existe alguma dificuldade em viver plenamente com a liberdade de expressão e de opinião e, sobretudo, em ver essa liberdade (de dizer bem e mal) como um valor essencial – não absoluto, mas muito importante, e bem mais do que outros


Provavelmente, já poucos leitores se recordam do episódio (da “polémica” – como se diz para apimentar) ocorrido há semanas a respeito das declarações de Maria Vieira sobre o Algarve. E é natural a falta de memória, não só porque foi mais um dos fogos-fátuos ruidosos que enchem as redes sociais e alguma comunicação social mas não interessam para coisa alguma, mas também porque estas ditas “polémicas” (e mesmo muitas notícias) não duram mais do que os escassos dias que os velhinhos circos itinerantes ficavam em cada lugar a entreter miúdos e graúdos. Permito-me, no entanto, trazer o episódio à baila, não para falar do Algarve ou do que Maria Vieira disse, mas de algumas reações às suas declarações.

Ao que recordo, a maioria das reações foi de censura (e algumas até com uma pontinha de histeria) porque Maria Vieira teria – aqui d’el-rei – dito menos bem do Algarve e louvado outros destinos turísticos, e – horror – teria assim colocado em causa anos de promoção do Algarve. Ora, estas reações – que são, em liberdade, tão legítimas quanto as opiniões de Maria Vieira – denotam pelo menos duas coisas que, estando muitas vezes adormecidas ou camufladas no nosso viver coletivo, volta e meia vêm ao de cima. Uma delas é alguma dificuldade em viver plenamente com a liberdade de expressão e de opinião e, sobretudo, em ver essa liberdade (de dizer bem e mal) como um valor essencial – não absoluto, mas muito importante, e seguramente (em minha opinião, claro, mas parece que na da Constituição também) bem mais importante do que outros, como sejam, por exemplo “o amor ao torrão natal” ou “o encanto turístico do Algarve”. Maria Vieira comprometeu anos de esforço para elevar o Algarve aos olhos dos turistas? Mesmo que assim tenha sido (e passem a histeria e o exagero da afirmação), e então, não é isso um preço justo a pagar pela liberdade de expressão e de opinião? Ou só se é livre para dizer bem e elogiar? Pois, deve ser – a bem da nação.

E a outra coisa que veio ao de cima foi um certo patrioteirismo (não confundir com patriotismo) que existe entre nós e que leva tanta gente a, amiúde, elevar as coisas portuguesas, às vezes ridiculamente, a um altar que lhes não pertence. A melhor comida, o melhor sol, os melhores emigrantes, os melhores Descobrimentos, as praias mais belas, os melhores futebolistas, et cetera. Deve ter sido uma coisa que nos ficou de décadas de história mal contada, que ensinava só parte das coisas e que, nos mapas das salas de aula, desenhava o Império Português sobre a Europa para mostrar como era grande. Deve ter sido, também, coisa que nos ficou de um certo espírito que, em 1940, erigiu para os lados de Belém uma Exposição do Mundo Português que, nalguns aspetos, não andava, em escala mental e em ternura paroquial, longe do Portugal dos Pequenitos. Esse era um tempo – que deixou marcas – em que o presidente do Conselho não saía de Portugal e, ao que consta, nem sequer frequentava o Algarve.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


Maria Vieira e o mundo português


Existe alguma dificuldade em viver plenamente com a liberdade de expressão e de opinião e, sobretudo, em ver essa liberdade (de dizer bem e mal) como um valor essencial - não absoluto, mas muito importante, e bem mais do que outros


Provavelmente, já poucos leitores se recordam do episódio (da “polémica” – como se diz para apimentar) ocorrido há semanas a respeito das declarações de Maria Vieira sobre o Algarve. E é natural a falta de memória, não só porque foi mais um dos fogos-fátuos ruidosos que enchem as redes sociais e alguma comunicação social mas não interessam para coisa alguma, mas também porque estas ditas “polémicas” (e mesmo muitas notícias) não duram mais do que os escassos dias que os velhinhos circos itinerantes ficavam em cada lugar a entreter miúdos e graúdos. Permito-me, no entanto, trazer o episódio à baila, não para falar do Algarve ou do que Maria Vieira disse, mas de algumas reações às suas declarações.

Ao que recordo, a maioria das reações foi de censura (e algumas até com uma pontinha de histeria) porque Maria Vieira teria – aqui d’el-rei – dito menos bem do Algarve e louvado outros destinos turísticos, e – horror – teria assim colocado em causa anos de promoção do Algarve. Ora, estas reações – que são, em liberdade, tão legítimas quanto as opiniões de Maria Vieira – denotam pelo menos duas coisas que, estando muitas vezes adormecidas ou camufladas no nosso viver coletivo, volta e meia vêm ao de cima. Uma delas é alguma dificuldade em viver plenamente com a liberdade de expressão e de opinião e, sobretudo, em ver essa liberdade (de dizer bem e mal) como um valor essencial – não absoluto, mas muito importante, e seguramente (em minha opinião, claro, mas parece que na da Constituição também) bem mais importante do que outros, como sejam, por exemplo “o amor ao torrão natal” ou “o encanto turístico do Algarve”. Maria Vieira comprometeu anos de esforço para elevar o Algarve aos olhos dos turistas? Mesmo que assim tenha sido (e passem a histeria e o exagero da afirmação), e então, não é isso um preço justo a pagar pela liberdade de expressão e de opinião? Ou só se é livre para dizer bem e elogiar? Pois, deve ser – a bem da nação.

E a outra coisa que veio ao de cima foi um certo patrioteirismo (não confundir com patriotismo) que existe entre nós e que leva tanta gente a, amiúde, elevar as coisas portuguesas, às vezes ridiculamente, a um altar que lhes não pertence. A melhor comida, o melhor sol, os melhores emigrantes, os melhores Descobrimentos, as praias mais belas, os melhores futebolistas, et cetera. Deve ter sido uma coisa que nos ficou de décadas de história mal contada, que ensinava só parte das coisas e que, nos mapas das salas de aula, desenhava o Império Português sobre a Europa para mostrar como era grande. Deve ter sido, também, coisa que nos ficou de um certo espírito que, em 1940, erigiu para os lados de Belém uma Exposição do Mundo Português que, nalguns aspetos, não andava, em escala mental e em ternura paroquial, longe do Portugal dos Pequenitos. Esse era um tempo – que deixou marcas – em que o presidente do Conselho não saía de Portugal e, ao que consta, nem sequer frequentava o Algarve.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira