1. A leitura dos jornais, mesmo que apetecida, não deixa, hoje em dia, de constituir uma rotina quase sempre penosa e, pior, desencorajante.
Não me refiro tanto ao que as notícias sempre revelam, mas à mensagem implícita que delas resulta.
Lidas integradamente, tais notícias parecem apontar quase todas, na verdade, para a inevitabilidade ou deterioração da realidade ou para a perigosidade e ineficiência das políticas que procuram minimizar os danos humanos a ela associados.
Chocados, vamos lendo sobre a incongruência das medidas tomadas face à vaga de refugiados e sobre as consequências políticas que elas vão produzindo na Europa: a emergência, cada vez mais visível, dos ovos da serpente fascista.
Preocupados, vamos lendo sobre a incompreensível premência política de preocupações razoáveis – mas descontextualizadas – como a eutanásia, apesar do conhecimento da traumática experiência holandesa: refiro-me ao noticiado êxodo alarmado de muitos velhos para a vizinha Alemanha, dada a prática mal regulada e, ao que parece, abusada que sucede naquele país.
Perplexos, vamos lendo da placidez com que os políticos e técnicos europeus insistem em burilar projetos sobre questões menores que, à partida, sabem nunca poderem ser concretizados, sem que tenham a perceção de que o que se lhes exige é, neste momento, uma tomada de consciência própria e um alerta cidadão sobre os riscos que todos corremos: refiro-me à circunstância da União Europeia e aos seus desatinados caminhos recentes.
Desgastados, vamos lendo sobre a incongruência das medidas tomadas a nível europeu para lidar com a crise económica – que até parece ser desejada e mantida como instrumento propiciador de um projeto de retrocesso social e democrático.
Atónitos, vamos lendo como, no nosso país, se procura relançar um programa social, cujo desenvolvimento foi interrompido pelas políticas da crise, sem que, em simultâneo, se aposte em fortalecer um movimento cívico que o aprofunde, defenda e impeça a sua morte anunciada, de manhã à noite, pelos media: refiro-me à necessidade de ganhar politicamente os cidadãos para o sentido humanitário das transformações legais e sociais que visam repor o projeto constitucional.
2. Quando, ainda jovem, me explicaram o significado da expressão “discutir o sexo dos anjos” e o seu contexto histórico, não pude deixar de sorrir, incrédulo.
Hoje, ouvindo as alienantes e repetitivas notícias e debates sobre a crise e os seus bancos, posso entender melhor o seu significado.
Observando todos os dias milhares de raparigas adolescentes, quase todas já de nacionalidade holandesa e nesse país escolarizadas, vestidas à ocidental mas de cabelo coberto à maneira muçulmana – o que não sucedia há cinco anos, como me disseram -, compreendo, pois, o retorno a tal tipo de tradições e o significado desse gesto no contexto do continente onde vivem.
Que pode, de facto, entusiasmar uma geração de jovens aculturados que, vivendo embora melhor na Europa, não encontra nela qualquer notícia que a faça abraçar os valores de uma racionalidade que, tendo sido libertadora e fautora do seu progresso, se reduz hoje a um discurso económico cego e sem réstia de preocupações humanistas?
Enquanto nos dedicamos, assim, a discutir o sexo dos nossos anjos – aqueles que, sem remorsos e sem qualquer legitimidade democrática, destroem aquilo que sonhámos e por que lutámos -, outros demónios, também eles anjos, vão-se impondo e enegrecendo o nosso futuro.
Jurista
Escreve à terça-feira