Em economia há palavras que não se dizem e medidas que não se anunciam: fazem-se. No tempo do escudo, quando era necessário desvalorizar a moeda, a decisão era anunciada de forma repentina para evitar fuga de capitais. Nos bancos que são resgatados, é suposto ninguém saber de nada antes das intervenções, para evitar corridas aos depósitos. Fecham a uma sexta-feira, recebem uma injecção de capital e abrem na segunda-feira com outro nome.
Na dívida pública, poucos arriscam anunciar a palavra ‘reestruturação’ de forma oficial. Mas ela vai-se fazendo. Desde 2011, o Estado português já conseguiu alterar os prazos de pagamento de 81 mil milhões de euros da dívida pública – cerca de 36% do que o país deve a credores.
Na última semana, o IGCP, o organismo que gere a dívida pública, anunciou uma recompra de mil milhões de euros em Obrigações do Tesouro. A notícia passou despercebida, mas foi a última de muitas operações no mercado que têm vindo a alterar o perfil da dívida pública.
Nestas operações, o Estado usa dinheiro em carteira ou endivida-se a juros mais baixos e compra a própria dívida que tinha emitido antes, a juros mais altos. O objectivo tanto pode ser poupar nos juros como aliviar picos de reembolsos no futuro. E, segundo dados do IGCP compilados pelo i, o Estado recomprou 3,9 mil milhões de euros desde a entrada da troika em Portugal, em Maio de 2011.
A estas recompras de dívida somam-se as operações de troca de dívida que o IGCP tem feito com alguma regularidade. Em termos simples, estas operações fazem com que os credores privados aceitem entregar ao Estado dívida mais antiga, mas com prazos mais apertados, e receber em troca novos títulos de dívida, com prazos mais dilatados.
Adiamento O objectivo aqui não é poupar nos juros, mas apenas adiar o pagamento e aliviar os picos de reembolsos em determinados anos, que poderiam causar problemas de tesouraria ao Estado. Houve já várias operações destas desde 2011: o Estado conseguiu que os credores privados aceitassem adiar os prazos de pagamento de 17 mil milhões de euros, segundo os dados do IGCP.
Mas a principal fonte de alívio na dívida veio dos credores institucionais europeus que participaram no programa de assistência financeira. Através de dois fundos de resgate europeus, o país recebeu 52 mil milhões de euros, mas as condições de pagamento foram revistas.
O planeamento inicial ao abrigo do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira (MEEF) previa uma duração média de 7,5 anos, com margens de juro de 2,15%. Logo em outubro de 2011, à boleia de novas condições atribuídas à Grécia, as margens de juro foram suprimidas. Mais tarde, o prazo de vencimento médio deste empréstimos foi aumentado para 19,5 anos. Os empréstimos ao abrigo do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) foram igualmente alargados, também com supressão de margens de juro. Segundo um relatório recente do Tribunal de Contas Europeu, o corte de juros e a extensão das maturidades dos empréstimos europeus permitiram a Portugal poupar 2,2 mil milhões durante o programa de assistência.
Com o FMI, também houve renegociação de prazos, mas a opção foi a inversa: aproveitando os juros baixos com tem conseguido financiar-se, em grande parte devido à atuação do Banco Central Europeu, o anterior governo decidiu antecipar parte dos pagamentos ao FMI, que cobra juros mais altos.
No ano passado, Portugal pagou 8,4 mil milhões de euros antecipados ao FMI, depois de o anterior governo ter pedido autorização para devolver 14 mil milhões de euros em dois anos e meio.
Será suficiente? O novo governo reviu este ritmo para não não reduzir o dinheiro disponível na tesouraria do Estado – a já celebre almofada financeira -, mas ainda assim deve devolver outros 3,3 mil milhões antecipados este ano.
Assim, entre recompras e trocas de dívida e novos prazos com de fundos europeus e FMI, Portugal já modificou os prazos de 81 mil milhões de euros na dívida pública, mais de um terço dos 224 mil milhões de euros de dívida pública com que o Estado fechou o ano passado.
Resta saber se o alívio nos juros permitido por estas operações é suficiente para Portugal conseguir honrar todos os compromissos que tem, a médio prazo.
Num estudo de quatro economistas – Ricardo Cabral, Ricardo Paes Mamede, Paulo Trigo Pereira e Emanuel Santos – as simulações sobre a capacidade de reembolso da dívida davam resultados pouco animadores.
Segundo o estudo, feito em 2014, que a dívida pública portuguesa passasse dos 130% do PIB em 2014 para os 60% que servem de referência na Europa, teria de haver excedentes primários elevados durante mais 23 anos.
Discussão política A questão tem sido debatida no parlamento pela mão dos partidos à esquerda. O PCP anunciou uma iniciativa para pedir a renegociação da dívida pública e o BE defendeu num documento de estratégia interna que o caminho terá de passar por uma negociação mais dura com Bruxelas.
O governo PS está mais cauteloso. “O governo estará nesse debate. Não o suscitaremos, mas estaremos lá, quando esse debate se concretizar em termos europeus”, disse o ministro das Finanças, Mário Centeno, no parlamento.
Depois da aprovação do Orçamento do Estado para 2016, as conversas com os parceiros de esquerda sobre o tema devem acentuar-se, com a criação de um grupo de trabalho para debater a negociação da dívida – uma medida prevista nos acordos à esquerda.