Mário Cruz. O fotógrafo que só podia ter sido jornalista

Mário Cruz. O fotógrafo que só podia ter sido jornalista


Aos 28 anos, o fotojornalista da agência Lusa venceu o World Press Photo na categoria Temas Contemporâneos. Pretexto para um passeio com o i pelos jardins da Gulbenkian.


Fotografar um fotógrafo é como entrevistar um jornalista, aquele constrangimento de acharmos que nos observam em cada passo, que todas as falhas serão notadas, que só isso basta para que tudo acabe num desastre. Um fotógrafo também não há de gostar de ser fotografado, pensamos nós. Mário Cruz confirma, e eis o ponto de partida para um passeio a três pelos jardins da Gulbenkian, onde ele será das poucas pessoas que não se perdem. Ao menos isso. Afinal este jardim foi por muito tempo uma espécie de quintal para o fotojornalista que, aos 28 anos, ganhou o primeiro prémio na categoria Temas Contemporâneos do World Press Photo com o trabalho “Talibés, Modern-day Slaves”.

Foi para aqui que trouxe as primeiras namoradas, foi aqui que fez os primeiros trabalhos para o curso de fotojornalismo no Cenjor, um centro de formação de jornalistas, onde entrou aos 18 anos, neste lugar que fica entre as suas duas escolas, a Marquesa de Alorna e o Liceu Camões, e ao lado da casa do pai, onde, arriscamos dizer, tudo começou. Queremos ir mesmo ao princípio. Vamos então por partes, diz. “O meu pai sempre foi fotógrafo, eu tive a presença da máquina fotográfica de uma forma super precoce, os outros miúdos recebiam as PlayStations, eu recebia uma máquina fotográfica, primeiro era sempre a máquina fotográfica. Claro que na altura isto era um bocado imposto, mas passado algum tempo percebi que queria explorar muita coisa na fotografia, que não estava bem no mundo do meu pai, que era fotógrafo de desporto e fazia mais serviços corporate. Achei que a fotografia dava mais do que isso.”

Chegou a achar que podia escrever, depois percebeu que não era bem isso – “não tenho muito jeito para a escrita”, sorri – até que comunicou aos pais que o que queria mesmo era estudar fotojornalismo. Assim mesmo, sem separar uma coisa da outra. Se há fotógrafo de quem não se pode falar sem a palavra jornalista justaposta é Mário Cruz. “Ainda me lembro de ir com o meu pai inscrever-me no Cenjor no último dia possível.” Tinha 18 anos, era o mais novo, coisa que se tornaria regra até há bem pouco tempo na sua vida. Pouca gente com 28 anos dirá que começou a trabalhar aos 19 numa agência de notícias. Pois foi o que lhe aconteceu, depois de um estágio curricular na Lusa, no final do curso. “Lembro-me que passado um mês de estar lá me mandaram para o Afeganistão, fazer uma visita de um ministro, depois fui acompanhar as tropas portuguesas no Kosovo”, recorda. “A minha cabeça estava a mil, e o meu coração também. Foi uma fase que adorei. Ser um jovem fotojornalista com 19 anos, ter um ordenado, ter a primeira casa, viver no Bairro Alto sozinho.”

Foi numa dessas viagens ao serviço da agência Lusa que, em 2009, na Guiné-Bissau, ouviu pela primeira vez falar em histórias de crianças que são levadas para supostas madraças (escolas muçulmanas) no Senegal, onde são escravizadas por falsos professores corânicos que em vez de as educarem as obrigam a pedir esmola nas ruas. São essas crianças os talibés, que dão o título ao trabalho com que venceu o World Press Photo, e que “vêm de uma antiga tradição”, que evoluiu para os dias de hoje da pior forma. “Eles realmente mendigavam, pediam esmola, mas era para eles. Se calhar pediam uma hora por dia ou duas mas era para a sua alimentação, para os seus livros, para a escola. Com o passar do tempo estes falsos professores corânicos começaram a perceber que as crianças podiam ser uma fonte de rendimento e o que antes era uma tradição agora é uma maneira de explorar as crianças talibés”, explica ele que antes de se lançar ao trabalho para a Guiné-Bissau e o Senegal, entre maio e junho, com uma licença sem vencimento, esteve meio ano a fazer contactos e a preparar o trabalho. Mas não só dessa forma. As fotorreportagens que fez antes desta foram também uma forma de preparação.

Foi com o seu primeiro projeto, “Cegueira Recente”, que venceu o Prémio Fotojornalismo Estação Imagem Mora, em 2014, para no ano seguinte ser selecionado para o “30 Under 30”, um concurso com que a agência Magnum distingue 30 fotojornalistas com menos de 30 anos, com “Roof”, um trabalho sobre sem abrigo que ocupam casas abandonadas em Lisboa. “Foi esse trabalho que me preparou para este que fiz agora, foi um trabalho muito importante para aprender a saber estar em condições muito diferentes daquelas em que eu vivo habitualmente.”

Quando regressou do Senegal, pela primeira vez em dez anos de carreira sentiu dificuldade em editar um trabalho, em regressar às imagens que tinha feito. “Aquilo lá é tão diferente do mundo em que vivemos, que chegares a casa, teres o teu conforto e teres os teus luxos, teres a comida na mesa que sabes à partida que nunca faltará, é um bocado um choque”, conta. Só em Dakar, há mais de 30 mil crianças a viver nestas condições, acorrentadas, “sob uma pressão inimaginável, abusadas fisicamente com muita frequência”. E “a educação é nenhuma, a não ser ler alguns excertos do Corão”, sendo que “quando uma criança comete um erro, que é uma coisa normal, a ler seja o que for, é chicoteada”.

“Estamos agora aqui porque felizmente o trabalho foi premiado pelo World Press Photo. Eu tenho noção da dimensão que isso tem e não vou ser hipócrita, claro que me sabe bem ganhar o prémio, mas mais importante do que tudo é a visibilidade que isso dá ao trabalho. Fiquei muito feliz porque acho que é o prémio ideal para os olhos estarem focados neste tema. E não é por acaso que menos de 24 horas depois de ter ganho o World Press Photo recebi um email da Guiné-Bissau a dizer que 28 crianças tinham sido resgatadas. Acho que isso é o melhor prémio.”

claudia.sobral@ionline.pt