Faltam quatro meses de campanha eleitoral até à data aprazada para o referendo relativo ao Brexit, 23 de junho. Até lá chegará a primavera e aumentarão as vagas de migrantes. A renegociação das regras do jogo começada por Cameron deu já ideias a alguns outros líderes europeus: a Áustria, à margem do Conselho de Ministros da Administração Interna da União Europeia (UE) de ontem, decidiu revisitar o passado imperial e federou uma fronda balcânica que quer repor alguma ordem nas fronteiras de vários países, dentro e fora da UE; sempre amigo da democracia, Viktor Orbán anunciou na quarta-feira um referendo em que se perguntará aos húngaros se querem acolher refugiados extracomunitários; a Flandres belga amanheceu anteontem em estado de sítio, temendo uma invasão pelos migrantes expulsos da jungle de Calais e retomou os controlos na fronteira com a França; na segunda-feira, o secretário-geral da NATO, com a candura nórdica que o caracteriza, anunciou no Parlamento Europeu que os migrantes que venham a ser “salvos” no mar Egeu pelas forças da NATO serão devolvidos ao local de partida, ou seja, à Turquia.
Almas perversas que estejam a rever o “Yes Minister” na RTP Memória poderiam pensar que o Reino Unido (RU) tinha, finalmente, obtido êxito na tentativa de acabar de vez com a UE. É uma conclusão precipitada visto que, no plano nacional, as coisas não estão propriamente a correr bem a Cameron. E muito por culpa de um correligionário político, primo em grau distante e colega de Eton e de Oxford.
Alexander Boris de Pfeffel Johnson anunciou que irá fazer campanha pela saída do RU da UE e a libra escorregou como não acontecia desde a crise financeira de 2008. Pelo RU há sondagens que consideram que a sua palavra pode influenciar o sentido de voto de um em cada cinco eleitores. Boris é transversal, penetra em todos os eleitorados, ganhou duas vezes a Câmara de Londres, onde domina o centro-esquerda. Goza do estatuto de excêntrico, virtude amada e explorada pela comunicação social junto de um eleitorado farto de políticos formatados. Boris tem um estilo literário que combina os rendilhados de um educated com o punch que agrada à populaça e um killer instinct particularmente afinado.
Enquanto correspondente em Bruxelas do “Daily Telegraph” conseguiu contrabandear para a despensa política dos tories o euroceticismo que os menos distraídos se lembram de ter sido património do Labour pré-Blair, que então via com enorme desconfiança a expansão dos poderes de “Bruxelas”. Boris é um duende crónico.
Esta segunda-feira, a partir da sua coluna no “Daily Telegraph”, Boris explicou ao que vinha. Gastou 2 mil palavras para fazer um discurso de candidatura a primeiro-ministro assente no regresso da glória do tempo do Império Britânico. É pouco, mas pode ser o bastante para fazer ganhar o Brexit. A campanha do não basta-se com o dito. Não precisa de explicar, justificar e avaliar as consequências do não. Basta-lhe cavalgar os descontentamentos vários e todo o eleitor tem os seus descontentamentos de estimação. Se a culpa não for da UE, será certamente do governo.
O referendo pode trazer resultados terríveis, desde logo para os britânicos. E não é certo que haja um segundo. Do ponto de vista da inclusão de novas figuras no bestiário, já valeu pelo momento televisivo em que Nigel Farage tentou citar a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados para explicar o que aconteceria no day after. Como escreveriam os britânicos, recorrendo a uma só palavra: há coisas que não têm preço.