A Apple está a proteger o seu negócio ou o governo norte-americano está a usar um caso em que tem a simpatia da opinião pública para pressionar as fornecedoras de tecnologia a esticarem a corda na sua colaboração com as autoridades?
A resposta certa depende do lado que se escolha. Os defensores da Apple louvam a sua batalha pelo direito à privacidade dos indivíduos, quem está do lado do FBI quer que a segurança pública seja defendida. O debate divide a sociedade, mas uma sondagem ontem divulgada pelo Pew Research dava a dianteira às autoridades federais, com 51% dos americanos do lado da polícia e 38% a apoiarem a empresa de eletrónica. O debate é uma espécie de remake da discussão em torno da espionagem que o governo dos EUA fez a milhões de internautas do mundo inteiro em nome da luta contra o terrorismo.
O caso mais mediático tem a ver com o iPhone 5C do atacante de San Bernardino – um homem que, com a sua mulher, matou a tiro 14 pessoas numa festa de Natal, tendo o tiroteio sido considerado um ataque terrorista levado a cabo por extremistas islâmicos. É o seu telemóvel de trabalho que o FBI quer ver desbloqueado para seguir eventuais pistas na sua investigação, mas soube-se entretanto que a Apple está a ser alvo de outros pedidos semelhantes quanto a, pelo menos, 15 aparelhos em localidades tão distintas como a Califórnia, Illinois, Massachusetts ou Nova Iorque.
E, segundo a Reuters, a companhia já ajudou as autoridades numa série de outros casos. “Ajudou investigadores de Nova Iorque a tirarem dados do iPhone de um suspeito de abusos sexuais a uma criança, em 2013 apressou-se a extrair dados do telefone de um suspeito de pornografia infantil em Washington e em 2015 forneceu a agentes federais na Flórida os dados obtidos num telefone de um suspeito de tráfico de drogas”.
Tudo mudou em outubro no julgamento de outro caso de tráfico de estupefacientes. O “culpado” foi o juiz federal James Orenstein, de Brooklin. Para conseguir a cooperação das empresas de tecnologia, os procuradores costumavam invocar um diploma de 1789, a All Writs Act, no que se pode traduzir como a “lei de todos os mandados”. Até este julgamento todos os magistrados tinham assinado de cruz o pedido das autoridades federais, intimando as empresas a cooperar, o que estas obedientemente faziam. Mas o juiz Orenstein optou por outro caminho. Teve dúvidas sobre se a lei se aplicaria a uma fornecedora de produtos informáticos e deu a oportunidade à Apple de se pronunciar.
A partir deste momento, a empresa californiana não parou de contestar qualquer pedido que recebesse para desencriptar os dados dos iPhones que produz.
“Na melhor das hipóteses, a posição da Apple tem sido inconsistente”, escreveram os procuradores numa carta enviada ao juiz Orenstein. Aumentando a pressão, o diretor do FBI, James Comey, veio dizer publicamente que a Apple tem o dever moral perante as vítimas de cooperar. “Não conseguiremos olhar os sobreviventes nos olhos, ou olhar para nós mesmos no espelho, se não seguirmos esta pista” forçou.
A verdade é que a empresa está preocupada com as consequências desta batalha. Além dos receios com a má imagem junto da opinião pública que o caso pode dar, as vendas e as acções da Apple já não são o que eram, e até um dos seus maiores ativos, o factor “coolness”, foi agarrado por outras marcas.
Na segunda-feira, o presidente, Tim Cook, escreveu um email aos trabalhadores da empresa afirmando que “não parece certo” recusar ajudar o FBI nesta investigação. Mas não recuou um milímetro na posição tomada, considerando que desencriptar o iPhone em causa poderia ameaçar os “direitos fundamentais de todos”, bem como atentar contra a segurança da informação de milhões de utilizadores dos seus dispositivos. ”Não temos qualquer tolerância ou simpatia pelos terroristas”, acrescentou Cook, mas isso não significa que a empresa vá criar ferramentas que permitam o acesso aos dados encriptados dos seus iPhones.
No mundo da tecnologia há quem esteja do lado da Apple, nomes muito fortes como o Facebook, o Twitter e a Google. Mas outro peso pesado veio ontem levantar dúvidas sobre a atuação da empresa fundada por Steve Jobs: o seu rival Bill Gates. O magnata apoia os investigadores e concorda que a Apple deve ser forçada a ajudar a desencriptar o iPhone, mas ao mesmo tempo contrabalança a sua posição afirmando que não defende o acesso ilimitado do governo aos dados pessoais. “Penso que as pessoas querem que o governo aja em seu nome se considerarem que as salvaguardas existem” resumiu, em declarações à Associated Press.