Correntes d’Escritas. Literatura possível

Correntes d’Escritas. Literatura possível


Os suspeitos do costume voltam à Póvoa de Varzim entre esta terça-feira e 27 de fevereiro para o grande festival literário em Portugal.


Por muito tempo o país manteve-se fiel aos três F, número que batia certinho com as suas três sílabas, a mais pacata das tradições gozando a linda vista para o mar. Mas o ir andando dos tempos, que com certo vagar lá se vão mudando, foi obrigando também a que as antigas vontades se alargassem. Hoje talvez já se possa dizer que Portugal garantiu a aquisição de um quarto F. Temos agora, portanto, os mesmos Fado, Futebol e Fátima, a que se juntam os Festivais. Quase todo o ano, de toda a espécie e feitio, para fazer gente aos montes. E no que toca à Literatura, o Correntes d’Escritas leva a coroa.

Na temporada que está prestes a arrancar, e que até final do ano contará com uma dezena de festivais literários, é o da Póvoa de Varzim o maior, aquele que já vem mais embalado, reclamando maior tradição. É justo por isso que seja este a dar o tiro de partida. A sua 17ª edição começa hoje e decorre até 27 de fevereiro, passando de 4 para 5 dias, com um programa que uma vez mais promete empenhar-se na promoção do livro, da leitura, do encontro e debate com escritores. O evento teve o seu início no recuado ano de 2000 – para se ter uma ideia, ainda o Facebook estava a quatro anos de ser lançado e os telemóveis não passavam de uns tijolos nas mãos de yuppies e construtores civis –, e então era evidente o cruzamento de uma reunião familiar com uma festa tupperware. Eram poucos os escritores convidados, 23 ao todo, que se distribuíram por 5 mesas e 7 sessões em escolas e colégios da cidade nortenha famosa pela sua linda vista para o mar. De volta ao futuro, o programa das festas este ano conta com as participações de mais de 70 escritores, de 11 nacionalidades. E novos quantos são? 20 estreantes juntam-se à família das Correntes, como é “carinhosamente apelidado” o evento. Mas não é só a família que cresce de ano para ano, como salientou Luís Diamantino, o vereador da Cultura da Câmara da Póvoa de Varzim, o Correntes passou de uma sala de 70 lugares, na primeira edição, para uma sala com 700 sempre lotada.

Desde o Casino da Póvoa até ao Cine-Teatro Garrett, o evento tem percorrido, ao longo dos anos, várias salas e locais na Póvoa de Varzim, ajudando a dinamizar a vertente turística do concelho. Segundo a autarquia, o Correntes atrai milhares de pessoas à cidade, e isto é feito com um orçamento de 50 mil euros, que engloba uma comparticipação do Fundo de Turismo. É uma soma irrisória se comparado com os 600 mil euros de investimento para a primeira edição (2015) do Folio – Festival Internacional de Literatura de Óbidos –, com centenas de convidados e algumas sessões canceladas por falta de público. E Diamantino garante que “a compensação em termos de visibilidade nos órgãos de comunicação social a nível nacional custaria muito mais do que é feito no investimento das Correntes d’Escrita.”

Portanto, é uma daquelas situações em que todos ganham. Mas o retorno, supõe-se, não se fica meramente pelo impacto ao nível turístico, mas terá ainda uma componente de apoio aos autores, às editoras portuguesas, e ao livro como entidade que, apesar das mil e uma crises do país, mantém a sua aura no reino. O pressuposto, portanto, é que estes festivais estão a fazer disparar as vendas de livros em Portugal. Só que não é bem assim. Apesar do empenho dos responsáveis de entidades públicas como a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e, muito particularmente, das autarquias, os inquéritos mais recentes continuam a deixar claro que os portugueses não gostam de combinar sol e mar com livros. Entre os cidadãos da União Europeia continuam a ser dos que revelam menos interesse pela leitura. O declínio na venda de livros extravasa a quebra do ciclo económico, e um estudo encomendado pela APEL há dois anos revelava que há cada vez menos livrarias e menos editoras.

É possível que a cultura dos festivais não tenha ainda arrebatado o país inteiro, é possível que 10 festivais ainda seja pouco, é possível que o Portugal Futuro esteja já lá à frente, à nossa espera. Esse país “aonde o puro pássaro é possível”. Vamos já avisados de que “poderá ser pequeno como este/ ter a oeste o mar e a espanha a leste” mas, pelo menos, “tudo nele será novo desde os ramos à raiz”.

Se calhar esse é o “país possível” pelo qual aqui continua a definhar-se à espera. Ou se calhar, em vez de Ruy Belo, talvez nos devêssemos socorrer antes de um outro poeta, David Mourão-Ferreira, e dos versos do poema “Da Literadura”, que fala assim: “Os literaduros Os literadonos/ Com berros e murros se levam os tolos// Que vento os enfuna. Ninguém Ihes resiste/ Ó literadunas Ó literadiques// Vão tendo alianças entrando em conluios/ com literadamas com literadúbios// Cada vez mais sábios cada vez mais finos/ Literadurázios Literadurinhos// Tão literadoces literadurázios/ Já parecem outros em seus ricos pátios// Tão literadoutos literadurinhos/ Coitados de todos literadormindo”.

Com mais dois festivais em abril – o Festival Literário da Madeira e o Fronteira, em Castelo Branco – e outros três em maio – Livros a Oeste, na Lourinhã; o Encontradouro, em Sabrosa, e o Literatura em Viagem, em Matosinhos –, a que se seguirão ainda os de Belmonte, Viseu, Cascais, a segunda edição do Folio em Óbidos, a Escritaria, em Penafiel, e um novo festival anunciado para a cidade berço do país, Guimarães, ainda sem nome, ao percorrer este elenco no artigo que assinava ontem no “DN”, aquilo que João Céu e Silva interroga perante “este efervescente mundo festivaleiro” é “se existem escritores portugueses suficientes para tantas evocações literárias”. Mas se logo os responsáveis pelo novo F garantem “que não falta por onde escolher”, no meio de tanta vontade de promover a cultura, encontros e debates, o que ninguém parece disposto a fazer é questionar o próprio modelo.

Paulo Ferreira, da Booktailors, um dos principais responsáveis pela tentativa de criar no país uma “rede” de festivais literários, não contornou a simples evidência de que não só não há escritores para tantos festivais mas que os que há não conseguem por si só “chamar espectadores às sessões”. Isto exige criatividade dos organizadores, adianta, “portanto foi preciso misturar autores com outras personalidades do mundo da cultura”.

Nas reveladoras respostas que dá ao “DN”, Paulo Ferreira não esconde a natureza híbrida, chamemos-lhe assim, destes eventos, adiantando que as pessoas que a eles aderem “gostam de assistir a um debate em que estejam na mesa o Pedro Abrunhosa e o Valter Hugo Mãe. Esse modelo satisfaz e alarga o espectro de público que quer assistir aos festivais”, conclui.

E é neste ponto que ganham preponderância as reservas daquele que tem sido o mais veemente detractor da triunfante vaga de fundo que se alçou a prioridade ao nível das políticas culturais, nomeadamente no esforço para melhorar os índices de leitura, o crítico literário António Guerreiro. Nas suas crónicas no “Público” não perde oportunidade de procurar o tal debate que tanto estimam estes agentes. Curiosamente tem ficado sempre sem resposta. E há um aviso particularmente inquietante na sua análise deste fenómeno, o de que toda esta “ideologia da promoção ‘festivaleira’” que não se distingue da mais servil “obediência aos ditames do ‘capitalismo cultural’” não faz mais do que dar “meios à mediocridade cultural”, amplificando-a. Diz também que “o público que se mobiliza para essas manifestações não se satisfaz com o puro entretenimento, sente-se legitimado pela convicção de que se ocupa de problemas importantes e aparentemente sofisticados”.

A cultura dos festivais assenta numa retórica que os faz passar por grandes acontecimentos culturais. Mas, de um ponto de vista que não cede à transformação da literatura e da “vida literária” em mero entretenimento, é possível dizer que têm um efeito redundante em relação à lógica comercial, aproveitando os ventos do mercado, servindo de meras plataformas para as suas estratégias de marketing e espectáculo. Nesse aspecto, os festivais acompanham o problema em vez de se imporem como ilhas na corrente.

diogo.pinto@ionline.pt