“Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso.” Edmund Burke
Num mundo cada vez mais globalizado, onde a sociedade em rede o faz parecer amiudadas vezes pequeno, onde a perceção que temos é que a de estarmos muitas vezes conectados em direto, o poder das identidades resiste e afirma-se cada vez mais. Resiste e teima em afirmar-se. Tal e qual como uma soma de vontades sustentadas tendo em vista a afirmação da diferenciação económica, social e, sobretudo, cultural.
Parece contraditório. Mas não é. A ideologia da globalização, a sua obsessão, força a vontade de tornar tudo igual e daí despertar cada vez mais resistências, para não ser engolido o muito que é diferente.
O poder normativo, traduzido na prática abundante de atos normativos com vista a, por via jurídica, muito mudar, muito alterar, muito impor, sobretudo as mudanças e os paradigmas de vida pré–existentes à chamada era do “Homo comunicatus”, sucumbe cada vez mais perante a força, a memória e o poder das identidades dos povos. Num tempo em que a sociedade da informação tantas e tão boas oportunidades oferece, é caso para dizer que mesmo assim, a memória dos povos, a força das suas identidades dura muito mais que os tratados derivados dessa força avassaladora com origem na voragem normativa, que muitas vezes é imposta.
Desta (não só) aparente contradição deveremos retirar que a desconstrução de várias identidades culturais, sociais, económicas e até políticas, posta em prática nas últimas décadas por via normativa, não tem felizmente conseguido atingir todos os seus propósitos – de padronização e de tornar igual muito do que é diferente. Aqui encontramos a força e o poder das várias identidades em confronto com o poder normativo de pendor europeu e ocidental – poder normativo de pendor ocidental que tem permitido a perceção de que a Europa já não é detentora do título de potência normativa do mundo. Antes pelo contrário. As resistências a essa hegemonia normativa começam a fazer-se sentir. O exemplo da discussão à volta da negociação para a aprovação do megatratado transatlântico entre a Europa e os EUA é um exemplo prático, de entre muitos outros, do estado da arte em relação à afirmação do poder de várias identidades que não se querem ver submetidas por mais um tratado internacional.
As identidades e os sentimentos de pertença existem e querem cada vez mais afirmar-se. E também a este propósito deveremos ter presente que o passado nunca morre e o mundo não é plano. E por muito que pareça inconveniente e contra a corrente, as humanidades, ao contrário da simples ortodoxia dos números, são a garantia de que a memória dos povos, a vários títulos e em muitos sentidos, é mais forte e fiável do que muitos tratados e convenções internacionais. Numa Europa onde o desamor interno e externo ao seu projeto cresce todos os dias, a compatibilidade da memória e da identidade dos seus povos deverá ser cada vez mais considerada, num século e num tempo em que a unipolaridade normativa, muitas vezes, de pouco serve. Com a complexidade dos problemas a aumentar todos os dias. Com o grau de exigência dos cidadãos a ocupar cada segundo que passa nos velhos e nos novos media, os atuais poderes europeus têm de encontrar cada vez mais soluções que também tenham em conta as identidades muito presentes nas memórias dos povos europeus. Sob pena de, como nos foi avisando George Steiner no seu livro “Uma Certa Ideia da Europa”, estarmos por um lado a construir uma Europa económica alicerçada em generalismos e relativismos excessivos, correndo sérios riscos de ficarmos com uma Europa despojada de muitos dos seus valores culturais e religiosos e acabando, assim, por sermos um espaço económico que, muitas vezes, não passa de uma mera soma de tratados e demais comandos jurídico-comunitários. Esta compatibilização entre a memória dos povos e o poder das suas identidades tem de voltar a ser priorizada em toda a produção normativa europeia. E, já agora, também mundial.
Escreve à segunda-feira