Os PAUS têm voz, o instrumento que lhes faltava

Os PAUS têm voz, o instrumento que lhes faltava


 “Mitra” é o terceiro e novo universo do quarteto, editado na sexta-feira, dia em que atuam no Cinema São Jorge, em Lisboa. Motivo que valeu uma conversa tudo menos xunga


Mais mitra que chegar 20 minutos atrasado ao local da entrevista por não encontrar lugar para o carro é difícil. Pior é deixá-lo em frente a uma garagem, como que a dizer que se é o nosso profissionalismo que está em causa então quem quiser sair da dita garagem que espere. Até que a humildade trata de nos meter no sítio. Sobretudo quando, já sentados no hall de entrada do HAUS, – sala de ensaios e albergue vale tudo dos PAUS – Makoto Yagyu nos pergunta se pode enrolar um dos nossos cigarros. Não é que seja muito mitra um entrevistado cravar um cigarro a um entrevistador, mas o mini-debate que opôs tabaco de enrolar e industrial de seguida… isso sim, mitra como tudo. Ainda assim, não tão “Mitra” quanto este terceiro disco de PAUS. Sobretudo porque esta é daquelas palavras que quase pode ser o que um homem quiser.

Antes disto o “Clarão”, segundo disco – e consequente digressão – que serviu para estreitar ideias como: “Descobrimos que até nos dávamos bem”, diz Hélio Morais. Troque-se isto por miúdos estilo quatro homens enfiados dentro de um carro durante um mês e que se aguente a testosterona que dita o disco que toca no autorrádio. Fábio Javelim, Hélio Morais, Joaquim Albergaria e Makoto Yagyu aproveitaram soundchecks e pequenas jams que foram fazendo enquanto iam levando “Clarão” a todos os cantos. Tanto o carregaram que perceberam que era hora de o deixar repousar.

O passo seguinte foi fecharem-se no HAUS, largarem as estradas nacionais, e atirarem-se a “Mitra”, disco que agora nos chega, e que garantem ter sido feito, como sempre, à la PAUS. “O processo de gravação dos PAUS é um processo que é dos PAUS, não somos aquele tipo de bandas que vem com as músicas feitas para estúdio, as músicas são feitas e gravadas e editadas ao mesmo tempo. Acabamos por nos ouvir muito mais, o processo de composição é mais objetivo porque quando grava, grava um, mas estão a compor os quatro”, explica Joaquim Albergaria.

 

Pôr os paus a cantar Se há coisa que provoca discordância é uma ida ao cinema, um novo restaurante por frequentar. E os PAUS parecem ter-se cansado de ir sempre à mesma sessão da meia-noite, sempre ao mesmo bitoque. Isso seria o fácil, o pedido que o José Carlos lá da esquina berra para a cozinha mal estes rapazes entram na tasca. “Mitra”, afirma Albergaria, “É capaz de ter sido, no que ao instrumental diz respeito, das gravações com menos obstáculos, até porque já existiam esses esboços das soundcheck, que nos deram a primeira premissa de quase todas as músicas”. Mas as rosas acabam aqui.

Com a mudança de prato e de filme, igual a dizer fazer de PAUS uma banda com mais voz que o habitual, vieram as adversidades, quase sempre em modo discordância. “A voz obrigou-nos a sair de uma zona de conforto, ou preguiça, era mais preguiça, não tínhamos a necessidade de nos pormos nesse berbicacho e neste disco foi isso a que nos propusermos. Ou seja: tivemos que inventar uma forma para os PAUS cantarem, sendo que somos quatro e temos abordagens distintas. Mas estamos todos satisfeitos”, conta Albergaria.

Ora se até aqui PAUS era sobretudo instrumental, bateria vezes dois, baixo, teclas, ritmo a dispensar refrães para a audiência entoar em coro, este “Mitra” propõe um universo mais melódico, canção canção com aspeto de canção, mas, que ninguém ouse esquecer-se, isto são os PAUS, ou seja, o instrumento, aqui espécie de casino, ganha sempre. Ainda que os tenhamos desafiado para perceber se esta era uma forma de agradar outrém. “Nada disso, até porque se pensares não tocamos só em Portugal, se fossemos meramente calculistas mantinhamos o registo de não cantar demasiado porque lá fora as pessoas não entendem a nossa língua. Mas a verdade é que estas estruturas estavam mais A-B, saíram assim, e estando mais A-B ficavam mais desinteressantes se não tivessem voz a acompanhar, foi um bocado responder àquilo que saiu instrumentalmente”, conta Hélio Morais antes de ser interrompido por Makoto: “Foi antes um ir para outro lugar, um fazer diferente”.

Mais: estes senhores dão tão pouco a esse tipo de preocupação que se podem dar ao luxo de dizer que não fazem coisas premeditadas: “Não há um focus group ‘epá o nosso público vai querer ouvir isto’, não. Até porque uma das coisas fixes, e um dos principais problemas dos PAUS, é que não fazemos ideia qual é o nosso público”, contextualiza Joaquim Albergaria.

Mitra como o que se quiser A escolha de nome para terceiro disco é pantanosa. Propositadamente, diga-se. Mitra é tanta coisa que isso lhes pareceu ideal: “É isso mesmo, essa ambivalência. É uma palavra que tem um significado de dicionário, mas também foi sendo associada para uma série de outros significados. Há quem associe o mitra ao xunga, desde o chapéu que os bispos usam, até ao significado que para nós é mais recorrente enquanto banda e grupo de amigos que é o mitra, aquele gajo que faz, que não pertence necessariamente ao sítio onde está mas acaba por estar, é parte daquilo”, enquadra Hélio, ao que Albergaria acrescenta: “Nem é de onde vem nem é de onde está, está entre, a ideia do estar entre as coisas”.

Sim, descanse, eles não são tão geniais ao ponto de entrarem no estúdio e este conceito surgir do nada. Como se fosse pouco terem-no idealizado antes disso. “A ideia do mitra é essa ideia de fazer pontes, não o elogio do meio mas teres que estar no meio para conseguires juntar coisas. Ideia que veio antes, começámos a pensar antes, o mitra tinha mais sumo, punha-nos a pensar em questão de identidade, algum concílio entre a razão e o desejo, são tudo coisas que estão debaixo das letras e que cabem todas nesta nossa ideia de mitra. É esse um bocado o propósito da música, as pessoas têm que se juntar”, conta Joaquim.

Pedido a que acedemos, seja o bispo mais religioso, o xunga com o carro mais quitado, queira ser mitra como se é aqui. Nem que seja só durante estas nove faixas.