Martinho  da Arcada. Mais de 200 anos  de bicas  e poesia

Martinho da Arcada. Mais de 200 anos de bicas e poesia


Pessoa tomou aqui um café três dias antes de morrer. Centeno esteve lá há poucos dias. Os anos passam, uns ficam, outros vão. Mas o Martinho da Arcada continua de portas abertas


Steiner dizia: “Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ‘ideia de Europa’.” E a verdade é que é impossível desenhar Lisboa sem o Martinho da Arcada.

Localizado há 228 anos no Terreiro do Paço, ficou conhecido por ser um dos espaços preferidos de Fernando Pessoa e o local onde o poeta tomou uma bica três dias antes de morrer. Mas existem muitas outras histórias vividas neste café à beira-rio plantado.

“Poucas pessoas sabem disto, mas a verdade é que a Carta Constitucional portuguesa de 1826 foi redigida no Martinho”, explica ao i o escritor Luís Machado, responsável pela dinamização cultural do espaço e conhecedor de muitos dos eventos que ali ocorreram.

“Tornou-se também um ponto de encontro secreto da maçonaria, isto porque o dono [Alfredo Mourão] era o grande tesoureiro do Grande Oriente Lusitano. Com a lei de 1935, que visava a ilegalização e dissolução das sociedades secretas em Portugal, os membros da maçonaria passaram a ter de reunir em triângulo [apenas três membros] e em locais secretos, como cafés ou casas particulares. O Martinho da Arcada era um deles”, afirma Luís Machado. “Tudo passou por ali: jacobinos, monárquicos, republicanos, maçons, anarquistas, todos conspiraram naquele espaço”, acrescenta.

Mais tarde, durante o Estado Novo, o Martinho da Arcada também era usado como local para encontros importantes: “O ministro das Obras Públicas de Salazar, Duarte Pacheco, organizava reuniões num anexo do café, uma divisória com cinco mesas reservadas para as pessoas mais importantes”, recorda o escritor.

Mas para além dos acontecimentos históricos, vale a pena relembrar as figuras que por ali passaram para tomar apenas um café: “São tantos que é difícil lembrar–me de todos. Passaram por lá dezenas de pessoas, como Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Almada Negreiros, Amadeu de Souza-Cardoso, António Botto, António Ferro, António Gedeão, o compositor Augusto Machado, Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro, Bulhão Pato, Cesário Verde, Eça de Queirós, Fernando Namora, Gago Coutinho, Jaime Cortesão, José Régio e muitos outros”, explicou ao i Luís Machado.

E não eram apenas os portugueses que gostavam de passar pelo mítico café. O escritor brasileiro Jorge Amado, o autor chileno Antonio Skármeta, o músico Ivan Lins, o escritor italiano Antonio Tabucchi e o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder são alguns dos nomes que já passaram pelo Martinho da Arcada. “Até o criador dos desenhos animados Pokémon já esteve aqui”, recorda o atual dono do espaço, António Sousa, mostrando-nos os desenhos que Satoshi Tajiri deixou no livro de honra.

O poeta tem muita força Mas quem traz mais pessoas ao Martinho da Arcada é mesmo Fernando Pessoa. São muitos os que chegam a Lisboa à procura da casa onde viveu, do espólio que deixou e dos seus locais preferidos. Por isso acabam sempre por ir tomar uma bica ao café preferido do autor de “Mensagem”.

“O poeta tem muita força. É graças a ele que muitos turistas passam por aqui”, afirma António Sousa. Mas a verdade é que Pessoa também devia muito a este café. “Agostinho da Silva dizia: ‘Se não fosse o Martinho, Fernando Pessoa tinha morrido mais cedo.’ Ele comia muito pouco e a antiga dona, Albertina Mourão, sabia que ele era muito esquisito mas gostava de ovos mexidos com queijo, por isso estava sempre a oferecer-lhe uma refeição deste género”, explica o atual gerente.

Pessoa chegou a ter uma mesa reservada no Martinho da Arcada, mas não era o único a ter este privilégio: “Havia duas mesas em mármore: uma era a do Pessoa e a outra estava abandonada. Quando Saramago ganhou o Nobel, quis oferecer-lhe essa mesa. Combinámos uma data e organizámos um evento para comemorar o feito do escritor”, recorda António Sousa. “Que palavras poderei escrever na minha mesa? Provavelmente não há outra melhor do que a mais banal de todas. Obrigado. Se escrevo obrigado, é aceitando o duplo sentido que comporta: de quem se sente obrigado pelo bem que me fizeram e de quem obrigado se sente a merecê-lo. A isso me obrigo”, lê-se na mensagem deixada pelo escritor no livro de honra do Martinho.

Em 1989, o Estado decide intervir e restaurar o mítico café lisboeta. Nessa altura começam a ser organizadas novas tertúlias com figuras proeminentes das várias áreas da vida portuguesa. As “Conversas à Quinta-Feira”, organizadas por Luís Machado, contaram com a presença de nomes como Álvaro Cunhal, Siza Vieira, Mário Soares, Maria de Lourdes Pintasilgo, Amália e Eusébio.

Com o tempo, estas reuniões deixaram de existir, mas várias personalidades continuam a passar pelo Martinho. “Ainda há pouco tempo esteve cá Mário Centeno. Eu disse-lhe, “isto é como o parlamento – saem uns, entram outros’”, brincou António Sousa. E o objetivo é continuar a fazer com que entrem muitas pessoas, apostando cada vez mais na cultura. “Posso revelar que estamos a tentar adquirir o andar de cima do café”, disse ao i o atual dono do estabelecimento. A informação foi corroborada por Luís Machado, que tenciona “criar um pequeno auditório para a realização de espetáculos e lançamentos de livros”.

Se o Martinho vai durar mais 200 anos? Não se sabe. Mas ninguém esquecerá o café onde Pessoa foi feliz e, quem sabe, escreveu alguns dos versos que hoje declamamos.

“Ai que prazer

Não cumprir um dever

Ter um livro para ler

E não fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

Sol doira

Sem literatura

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal

Como o tempo não tem pressa…”

Siga o conselho de Pessoa e aproveite os dias de sol e a brisa do Tejo. Sem pressa. De preferência com uma bica e um pastel de nata no Martinho.

Pergunta e Resposta

António Sousa, Proprietário do Martinho da Arcada 

Como têm sido os últimos dias do Martinho?

Muito difíceis. Principalmente desde os atentados em Paris. Foi horrível, sentimos muito. Nem o 11 de Setembro teve este impacto. Mas mesmo com a crise e a carga fiscal, o Martinho esteve bem. A parte má é que há menos turistas e cada vez menos pessoas a viver em Lisboa. Nós temos vindo a sentir essas diferenças ao longo dos últimos anos.

Têm tido o apoio da autarquia?

O único político com quem me zanguei foi António Costa. Deixou-nos um presente envenenado à porta, com a reabilitação do Terreiro do Paço. Sabia que à hora de ponta passam 150 autocarros da Carris aqui à porta? Já enviei alguns recados para fazermos as pazes.

Qual o autarca que foi mais amigo do café?
João Soares vinha cá várias vezes, mas o mais amigo foi Nuno Abecasis: todos os dias vinha cá tomar um café.

Como vê o futuro do Martinho da Arcada?

O Pessoa é um rei e muitas pessoas vêm aqui por causa dele. Não faz ideia da quantidade de turistas que chegam aqui por causa do poeta. Mas esse fluxo tem vindo a diminuir. A cidade está adormecida e o turismo fraco, mas faremos de tudo para que o Martinho continue aberto. Faremos todos os apelos para que não deixem o Martinho morrer. Até porque não é uma causa minha. Quando eu for, o Martinho fica. 

Notícia corrigida