Terrorismo e sistema judicial: questões relevantes


Se o aparelho judiciário estivesse preparado e devidamente organizado, seria necessário decretar o estado de emergência ante os fenómenos de terrorismo?


1. Quando preparamos um texto sobre um tema que julgamos entender, acontece, por vezes, que ele próprio nos interpela, chegando mesmo a questionar certezas que tínhamos por adquiridas.

O texto parece resvalar, então, para áreas que nunca tínhamos discutido mas que, subitamente, se nos afiguram como intransponíveis.

Nesse deslizar para terrenos recônditos, o texto, na sua teimosa autonomia, vai confrontar-nos com apontamentos que nunca relacionáramos com o tema principal, reformulando radicalmente a perspetiva inicial que tínhamos programado para ele.

Foi o que, recentemente, me aconteceu quando, já no desenvolvimento de uma exposição sobre os problemas da cooperação judiciária penal no âmbito do fenómeno do terrorismo atual, fiquei repentinamente bloqueado com uma ideia que apenas queria tratar marginalmente.

Algo impertinente, o texto barrou-me o caminho.

Qual o papel que cabe ao sistema judicial ante um fenómeno que, por natureza, o excede, pois se situa num plano ético e político absolutamente diferente daquele em que, por norma, intervém: o de uma sociedade regida por leis que de algum modo refletem, ainda assim, um quadro de valores acolhidos pela generalidade dos cidadãos?

2. Quem estuda estes assuntos não esquece o contributo de Günter Jakobs e da sua espantosa proposta da criação de um “direito penal do inimigo”: um direito penal e processual penal que, também ele excecional, se desenvolveria, com outros pressupostos, à margem do direito penal comum, impedindo assim que este fosse por ele contaminado.

Nenhum jurista informado ignora hoje, também, como tal propósito – em si mesmo perturbador dos valores democráticos – foi, no entanto, já ultrapassado, atenta a grave contaminação que em alguns países sucedeu quando, por causa do terrorismo, muitas medidas antes consideradas excecionais foram introduzidas e assumidas depois como normais no direito penal comum.

Só por si, tal evolução deveria obrigar-nos a reequacionar todos os pressupostos que justificam o envolvimento do sistema judicial democrático em estratégias de combate ao terrorismo.

Contudo, é exatamente com a declaração do estado de emergência em França, devido aos medonhos atentados terroristas de Paris – e principalmente após o seu prolongamento -, que a questão do papel do sistema judicial se nos revela mais evidente.

3. Marc Trévidic, um juiz francês especializado em terrorismo, entrevistado para um caderno do “Le Monde” de janeiro, apresentou a questão que, de certo modo, sintetiza e pode esclarecer a perplexidade que bloqueou o meu texto.

Seria necessário prolongar o estado de emergência – com tudo o que isso acarreta de suspensão de direitos cívicos e garantias processuais – se o aparelho judiciário estivesse preparado e devidamente organizado para responder oportunamente às necessidades que uma investigação deste fenómeno exige?

Por que razão o poder político prefere apostar sobretudo na atuação das polícias e serviços de informação à margem das garantias constitucionais, dificultando por isso, ou impedindo mesmo, a utilização judicial de muitos dos elementos de prova recolhidos nesse contexto?

Regressando, portanto, à questão inicial: a solução não residirá apenas em permitir que o sistema judicial exerça, de facto, em toda a sua plenitude e com a eficiência devida, a sua função constitucional comum?

Não ficaremos todos mais protegidos, apesar de tudo, se o sistema judicial for chamado a cumprir a sua função constitucional?

Quem ganha, afinal, se assim não acontecer?

 Jurista. Escreve à terça-feira

 


Terrorismo e sistema judicial: questões relevantes


Se o aparelho judiciário estivesse preparado e devidamente organizado, seria necessário decretar o estado de emergência ante os fenómenos de terrorismo?


1. Quando preparamos um texto sobre um tema que julgamos entender, acontece, por vezes, que ele próprio nos interpela, chegando mesmo a questionar certezas que tínhamos por adquiridas.

O texto parece resvalar, então, para áreas que nunca tínhamos discutido mas que, subitamente, se nos afiguram como intransponíveis.

Nesse deslizar para terrenos recônditos, o texto, na sua teimosa autonomia, vai confrontar-nos com apontamentos que nunca relacionáramos com o tema principal, reformulando radicalmente a perspetiva inicial que tínhamos programado para ele.

Foi o que, recentemente, me aconteceu quando, já no desenvolvimento de uma exposição sobre os problemas da cooperação judiciária penal no âmbito do fenómeno do terrorismo atual, fiquei repentinamente bloqueado com uma ideia que apenas queria tratar marginalmente.

Algo impertinente, o texto barrou-me o caminho.

Qual o papel que cabe ao sistema judicial ante um fenómeno que, por natureza, o excede, pois se situa num plano ético e político absolutamente diferente daquele em que, por norma, intervém: o de uma sociedade regida por leis que de algum modo refletem, ainda assim, um quadro de valores acolhidos pela generalidade dos cidadãos?

2. Quem estuda estes assuntos não esquece o contributo de Günter Jakobs e da sua espantosa proposta da criação de um “direito penal do inimigo”: um direito penal e processual penal que, também ele excecional, se desenvolveria, com outros pressupostos, à margem do direito penal comum, impedindo assim que este fosse por ele contaminado.

Nenhum jurista informado ignora hoje, também, como tal propósito – em si mesmo perturbador dos valores democráticos – foi, no entanto, já ultrapassado, atenta a grave contaminação que em alguns países sucedeu quando, por causa do terrorismo, muitas medidas antes consideradas excecionais foram introduzidas e assumidas depois como normais no direito penal comum.

Só por si, tal evolução deveria obrigar-nos a reequacionar todos os pressupostos que justificam o envolvimento do sistema judicial democrático em estratégias de combate ao terrorismo.

Contudo, é exatamente com a declaração do estado de emergência em França, devido aos medonhos atentados terroristas de Paris – e principalmente após o seu prolongamento -, que a questão do papel do sistema judicial se nos revela mais evidente.

3. Marc Trévidic, um juiz francês especializado em terrorismo, entrevistado para um caderno do “Le Monde” de janeiro, apresentou a questão que, de certo modo, sintetiza e pode esclarecer a perplexidade que bloqueou o meu texto.

Seria necessário prolongar o estado de emergência – com tudo o que isso acarreta de suspensão de direitos cívicos e garantias processuais – se o aparelho judiciário estivesse preparado e devidamente organizado para responder oportunamente às necessidades que uma investigação deste fenómeno exige?

Por que razão o poder político prefere apostar sobretudo na atuação das polícias e serviços de informação à margem das garantias constitucionais, dificultando por isso, ou impedindo mesmo, a utilização judicial de muitos dos elementos de prova recolhidos nesse contexto?

Regressando, portanto, à questão inicial: a solução não residirá apenas em permitir que o sistema judicial exerça, de facto, em toda a sua plenitude e com a eficiência devida, a sua função constitucional comum?

Não ficaremos todos mais protegidos, apesar de tudo, se o sistema judicial for chamado a cumprir a sua função constitucional?

Quem ganha, afinal, se assim não acontecer?

 Jurista. Escreve à terça-feira