Café Vá-Vá. “Vá-Vádiagem” nas Avenidas Novas há mais de 50 anos

Café Vá-Vá. “Vá-Vádiagem” nas Avenidas Novas há mais de 50 anos


Marcou a vida política e cultural do país. As tertúlias, as gravações de grandes filmes e as obras de arte expostas no espaço fazem dele um dos cafés com mais história em Portugal.


Dizem que todos os caminhos vão dar a Roma, mas se por acaso for pela Estados Unidos, tem mesmo de fazer uma paragem no snack bar do cruzamento para comer uma bifana e beber uma imperial. Foi o que muitos atores, músicos e políticos fizeram nas últimas cinco décadas. Claro que não estamos a falar de rotas longínquas, mas de duas das avenidas mais conhecidas de Lisboa e do café que as une – o Vá-Vá.

Este estabelecimento lisboeta – considerado um símbolo da cidade – abriu em 1958, em pleno Estado Novo, pelas mãos dos irmãos Petrónio e Gonzaga, como contou ao i um dos atuais gerentes.

“O Vá-Vá começou por ter o nome dos irmãos – ainda hoje a firma tem esse nome. Depois, com a gerência seguinte, mudaram o nome para o atual, em honra do jogador brasileiro Edvaldo Izídio Neto, conhecido como Vavá”, explica Fernando Eusébio.

E o retrato do futebolista tem lugar de destaque nas paredes da sala de refeições deste estabelecimento, ao lado de tantas outras figuras que passaram pelo espaço e influenciaram a vida política e artística de um país em ditadura.

Assembleias até de madrugada Nessa mesma sala estão pendurados os cartazes das várias tertúlias que ocorreram naquele espaço – um local que, nos anos 60, simbolizava a chegada da modernidade e era visto como um ponto de encontro para aqueles que gostavam de discutir os mais variados assuntos que preocupavam a sociedade da altura.

“Começámos a reunir-nos ali para discutir o que se passava no país. Muitos vinham a pé da faculdade [da Universidade Clássica de Lisboa] e paravam ali. Começaram assim, de uma forma espontânea, as tertúlias no Vá-Vá”, recorda o cineasta Lauro António, que ali debateu questões políticas, culturais e sociais com nomes como Medeiros Ferreira e António-Pedro Vasconcelos.

As reuniões eram compostas não só por académicos e figuras ligadas à representação, mas também “personalidades da música, como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Carlos Mendes, e do desporto, como Toni e Humberto Coelho”, explicou ao i. “Passaram por lá pessoas de todas as áreas, mas uma coisa é certa: quase todos eram opositores ao regime [de Salazar]”, acrescentou.

Com o passar do tempo, as tertúlias acabaram por desaparecer, mas Lauro António decidiu recuperá-las em 2007. E foram muitos os que se juntaram a estas iniciativas culturais: Raul Solnado foi o protagonista da estreia destes eventos, Herman José ainda hoje passa por lá para fazer uma visita, Lídia Jorge também continua a frequentar o espaço e o futuro Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também fez questão de participar nestes eventos.

Mas para além daqueles que marcaram presença no “Vá-Vádiando” – Paulo Portas, Alice Vieira, Sampaio da Nóvoa ou Nicolau Breyner –, existem também os que eram verdadeiros fãs deste café e restaurante. “O dr. João Soares vinha cá muitas vezes, quando estava na Câmara de Lisboa, Francisco Moita Flores gostava muito de vir comer uma bifaninha, Bárbara Guimarães gosta muito de bacalhau com couves – pedia-me sempre para fazer esse prato – e o padre Feytor Pinto é uma simpatia. Participaram todos nas tertúlias mas, para além disso, eram mesmo cliente do Vá-Vá”, recorda Fernando Eusébio.

Estas reuniões culturais estão temporariamente suspensas – “não consigo ter isto aberto até às 02h00. Em termos logísticos, é muito difícil. Mas já falei com o Lauro António para ver se conseguimos retomá-las a um sábado à tarde, por exemplo”, revela o gerente. “O ano passado só conseguimos organizar uma tertúlia, mas esperamos voltar a instituí-las. Agora sem jantar, mas com um lanche”, acrescenta o cineasta.

Entre o cinema, a pintura e outras artes Fernando Eusébio tem dificuldade em manter o espaço aberto – a crise financeira tirou poder de compra aos seus clientes, a carga fiscal também não ajudou e muitos dos habitués partiram, deixando o cruzamento das avenidas cada vez mais vazio. Mas por muito difíceis que sejam os tempos, a cultura já não sai do Vá-Vá. Nem o Vá-Vá sai da cultura. Até porque o edifício onde se encontra é um dos mais emblemáticos daquela zona de Lisboa. O espaço marcou de tal forma a geografia urbana da cidade que Paulo Rocha, um dos cineastas que arrancou com o chamado Novo Cinema português, escolheu este café como cenário para o célebre filme português “Verdes Anos”, de 1963.

De acordo com depoimentos do realizador, falecido em 2012, o dia da estreia ficou marcado por um episódio com o grupo do Vá-Vá, que se dirigiu até à prisão do Aljube e gritou aos presos políticos como tinha corrido a primeira exibição. Paulo Rocha soube mais tarde que muitos deles, assim que saíram do estabelecimento prisional, foram ver o filme, um gesto que emocionou o cineasta.

Também Lauro António escolheu este café como cenário do seu filme “Paisagem Sem Barcos” (1983), um dos episódios da série “Histórias de Mulheres”, gravada para a RTP.

Para além das gravações que deslumbraram os lisboetas nos anos 60, outras obras de arte existentes neste café fizeram parar Lisboa: os painéis de Menez. Em comparação com o Vá-Vá dos “Verdes Anos”, já pouco resta do café que tantas figuras da música, literatura, teatro e política portuguesa juntou, mas a obra de Maria Inês Ribeiro Fonseca faz-nos regressar aos tempos em que as discussões literárias davam vida às Avenidas Novas, os sussurros políticos chegavam à outra ponta da capital e as conversas em geral prendiam a atenção de quem por ali passava.

O que fez do Vá-Vá um café de referência e um ponto de encontro para tantas figuras? A localização, o ambiente, os petiscos, a clientela? Ninguém sabe, provavelmente um cruzamento de tudo isto. Mas hoje em dia, essas dúvidas já não assaltam ninguém. É um símbolo da cidade, um pedaço da história lisboeta que vive entre Roma e Estados Unidos, entre o clássico e o moderno, entre as tertúlias que já foram e as que ainda estão para vir.

joana.alves@ionline.pt