No apogeu da intervenção externa em Portugal, fez confusão a alguma gente que um tipo distante da esquerda se manifestasse abertamente contra a austeridade e contra esta Europa. Eu fui esse tipo.
Vamos, em primeiro lugar, desfazer alguns mitos. A austeridade não é ideológica, o dr. Passos Coelho não é um “neoliberal austeritário”, o eng.o Sócrates não é socialista e a chanceler Merkel não é democrata-cristã. A sentença de morte da Europa surge a partir do segundo em que a União e as políticas de austeridade passam a residir na mesma frase.
Se a austeridade não tem ideologia, tem certamente consequências ideológicas. É inconcebível para qualquer centro-esquerda que se preze (ou prezasse) tolerar tamanho ataque ao Estado social. E é também inconcebível para qualquer centro-direita que se preze (ou pudesse prezar) tolerar tamanho aumento de impostos. As consequências ideológicas da imposição da tecnocracia aos partidos do “centro” governativo são o descartar desse “centro” por parte do eleitorado e a direta ascensão de extremistas e populistas.
Foi com a austeridade pós-crise de 1929 que os nazis começaram a ganhar eleitorado; esta sempre se tratou do maior trampolim para ideologias radicais, à esquerda e à direita. Perguntem a Marine Le Pen, Pablo Iglesias, Nigel Farage, Alexis Tsipras, Jeremy Corbyn ou a António Costa e Catarina Martins. O Bloco de Esquerda não sobreviveu à sua travessia do deserto por causa de Mariana Mortágua; deve-o a Bruxelas. Assim como o fim do nosso tradicional arco de governação não se deve apenas à vontade de Costa governar; também aí Bruxelas tem muitas responsabilidades.
O presidente do Parlamento Europeu e o presidente do Eurogrupo são membros de partidos socialistas. No entanto, foram cúmplices do atentado à democracia que representa a austeridade. Há uma diferença entre cortar nas despesas e massacrar o contribuinte. Pelo menos, devia haver. Da mesma maneira que Merkel foi tão autocrata com os gregos e tão humanista com os sírios, Dijsselbloem é socialista em casa e tecnocrata com os países da periferia. A social-democracia morreu e deixou-se morrer.
Foi engraçado ver como Portugal foi de “encargo para o cidadão alemão” a “prova exemplar de que a austeridade funciona” no momento em que o Syriza chegou ao poder.
Veio agora dizer o Tribunal de Contas Europeu que esta tecnocracia, além de impor reformas demasiado amplas para um curto espaço de tempo, acabou por prejudicar a economia e aumentar o desemprego. Estamos chocados com a notícia, não estamos? Afinal, os sacrifícios não correspondiam a um remédio santo; a Europa enganou-se nas contas e não foi justa com os seus Estados-membros. É o TCE que o declara, não é Jerónimo de Sousa. Espero que o nosso primeiro-ministro passe a entrar em todas as reuniões da UE com o dito relatório debaixo do braço.
Estes senhores não passam de carteiristas que se cruzam consigo no metro e levam o seu dinheiro. Quando, finalmente, o PSD deixou de ser a versão um nadinha mais competente do PS, abandonando as bandeirinhas pseudo-centristas, não teve a força ou a vontade diplomática para se insurgir contra este crime. Mas tiro-lhes o chapéu. Portugal não virou uma Grécia e ganharam as eleições.
A fundação de solidariedade do projeto europeu foi corrompida por uma tecnocracia, ainda por cima incompetente. Até Vítor Gaspar assumiu que os multiplicadores estavam errados ao demitir–se.
As inconsciências financeiras do Partido Socialista não justificam a inconsciência democrática da União Europeia. Quando um comunista defende mais a democracia do que um social-cristão é porque algo não está bem.
Estes senhores deviam ir todos presos mais a sua folha de excel errada.