Há cidades que parecem esquecidas dentro de si mesmas, cortadas, gaguejam de rua para rua, vão-se repetindo como se houvesse ainda vida de bairro, ao sabor das conveniências de sempre, cidades que não ganham balanço, crescem perdidamente mas nunca assumem a sua dimensão, e assim se condenam a uma espacialidade meramente funcional. A pouca vida das suas lojas, vida meio atascada, os serviços mínimos de um café ou o bulício de pastelaria, com alguma sorte uma farmácia. A cada esquina uma papelaria, e algures ainda sobrevive uma florista paredes meias com uma lojinha de animais, onde os periquitos se esgarçam naquele pobre concerto. Há o imigrante que hoje faz as vezes de merceeiro, outro que tem a frente tecnológica, os telemóveis de última geração. Alguns bairros contam com a desgraçada fila que transborda de um centro de emprego, outros ganham ânimo com a fuga dos correios, aquele vermelho que ainda é sinal de um certo folguedo. Isto tudo para assinalar o óbvio, como o comércio levanta a vista, primeiro, e, com sorte, até a vida do chão. E assim trazemos-lhe um exemplo.
Under the Cover. À primeira vista, para quem por ela passa na rua, não é fácil dizer o que seja. Primeiro ponto a favor. Um espaço pequeno, de intervalo, numa zona da capital já de si mais liberta, desenrugada. Junto à Gulbenkian. É o número 88B da rua Marquês Sá da Bandeira. Mas o que é mesmo? Uma livraria que não quer vender-lhe primeiramente livros. Contra as suas paredes brancas, estantes que não oferecem ao olhar lombadas, mas expõem, como se se tratasse de uma galeria de arte, revistas de todo o mundo, publicações mais ou menos especializadas, mas independentes na sua grande maioria.
O convite é feito ao olhar, que primeiro descobre aquela montra desimpedida, e logo atrás tudo de uma vez. Uma loja harmoniosa com uma mesa ao centro, e se não é grande logo faz do espaço que tem uma composição justa. Ali estão, bem à vista, aquelas revistas vistosas cheias da dignidade de não terem de se acotovelar umas às outras. Conjugam-se, elaboram na distinção e graça de um design que releva a diferença. Como co-conspiradores, reunidas à volta da pequena sala.
Em vez das regras do jogo, que em todo o lado nos são ditadas, em vez de uma grande oferta, salta à vista antes de tudo um critério, um gosto pelos elementos equilibrados, sugestivos, e se, logo desde o nome, esta loja nos convida a ir para lá da capa, a leitura que dela se faz é todo um tratado. Começa por isto: se tem uma coisa a vender, convença quem a possa querer comprar de que ela é preciosa para quem a vende. Essa forma de honrar o produto tem um curioso e evidente paralelo nas lojas da Apple. Cada coisa no lugar que é o certo para ela. E a vontade é ter a loja inteira, como uma divisão a mais numa casa que se sonha, neste caso uma sala de leitura para se estar em pé. Passear circularmente, abrir uma revista, e outra, deixar-se cativar por distâncias que se abrem umas sobre as outras num espaço que logo deixa de ser o que era.
Luís Cunha e Arturas Slidziauskas, os donos, não parecem ter tido uma ideia de negócio. O que vemos é claramente a concretização de um gosto pessoal, algo que foi cultivado ao longo de anos e quis ser partilhado. Encontrámo-nos com Luís, que é quem segura as pontas no dia-a-dia da livraria. Os dois têm formação na área de saúde, mas Arturas, que chegou a Portugal pela primeira vez, vindo da Lituânia, como aluno de Erasmus em Coimbra, manteve-se empregado naquela área. Ao contrário de Luís, que por estes dias dedica todo o seu tempo à livraria.
O sonho dos dois foi aberto ao público no dia 15 de Dezembro. Os próximos meses dirão se Lisboa tem dimensão para acolher uma proposta que, sendo modesta, não deixa de ser um bom teste e desafio à cidade.
Atualmente, encontram-se ali entre 50 a 60 publicações internacionais que honram a categoria da imprensa alternativa, mas contando com o que já foi encomendado, e irá chegando nas próximas semanas, a livraria disporá de um catálogo de cerca de 150 revistas. Estas virão de todo o mundo, dos países com maior tradição e fulgor neste tipo de propostas editoriais, como Estados Unidos, Japão, Austrália, Alemanha, Espanha, Itália, até alguns que, sem a mesma diversidade ou tradição, conseguem ousar e espantar. Como é o caso do Líbano, representado pela “The Outpost” – revista feita em Beirute, e um exclusivo desta livraria no nosso país, dedica cada número a uma temática e, seja pela irreverência no aspeto e nos conteúdos, como pela abordagem ambiciosa e profunda, em pouco tempo conquistou a atenção de quem se interessa por estas publicações (eleita a revista independente de 2014, pela plataforma de divulgação norte-americana Magpile), servindo como uma montra para a cultura contemporânea naquela zona do mundo. Outro exemplo é a “Brownbook”, oriunda do Norte de África, e tida como uma referência na cultura urbana do Médio Oriente.
Luís vai sempre insistindo que não é um especialista, o que nos obriga a ver nele um amador, ou seja, alguém que, seguindo um encanto, vai alargando os seus horizontes. Explica-nos que está mais atento que nunca a sugestões de revistas, tem uma lista que já vai longa, e assim mesmo não hesita em perguntar-nos se conhecemos publicações desta natureza que merecessem estar ali.
Se a maioria das publicações disponíveis são estrangeiras – quase todas em inglês ou bilingues -, Luís garante que têm vindo a descobrir um auspicioso rol de revistas portuguesas de qualidade, com as quais pretendem emparceirar.
Privilegiam as publicações que potenciam a experiência de slow reading, a leitura em que a vertigem é antes de tudo a do prazer, algo que se faz com um certo vagar, não uma leitura em função de uma informação rápida, não se confundindo, por isso, com a generalidade das revistas ou dos jornais. São antes aquelas que, pela qualidade do suporte a nível do papel, design, impressão, se tornam artigos colecionáveis. Por outro lado, também se diferenciam dos livros, não exigindo o mesmo tempo de leitura. Luís refere que a falta de tempo é uma condicionante que leva um número cada vez maior de pessoas a procurarem as boas revistas ao invés dos livros, e que os dados indicam que, internacionalmente, estas publicações têm aumentado as vendas e resistido a um ciclo que tem castigado duramente a imprensa e o restante mercado de edição. “Estas publicações têm isso a seu favor: não há necessidade de fazer uma leitura demorada e contínua. Oferecem artigos pequenos, extremamente interessantes, que podemos começar a ler agora, e daqui a duas semanas ou três meses voltar a ler. Não perdem a atualidade, normalmente são temáticas que não têm prazo de validade. Por isso vão para as prateleiras junto com os livros, mas têm uma dinâmica diferente, que permite desfolhar, ter outras aproximações, mais e menos superficiais. No metro, por exemplo, é-me mais fácil ler uma revista, numa viagem curta ler uma história, do que avançar alguns parágrafos num livro.” Mas Luís sublinha que “não tem de ser uma coisa ou outra”, quem gosta de ler livros não precisa de ser convertido, deixar aqueles por estas. “Há espaço para os dois”, remata.
É fácil consultar o site da livraria, descobrir mais sobre as publicações que ali vão entrando, mas uma componente-chave numa iniciativa como esta é naturalmente a atenção, a capacidade dos responsáveis servirem de guias ou interlocutores a quem quiser molhar o pé nestas águas profundas, e a esse respeito é preciso destacar o entusiasmo contagiante de Luís na forma como recebe quem passa por aquela porta. De repente, fica muito claro o abismo de diferença entre estar à frente de um sonho ou de um negócio.