Ouça. Eu entendo o que o André está a dizer mas já lhe disse que eu não sei o que isso significa. Eu nunca vi uma carta igual a esta e olhe que trabalho na segurança social há muitos anos. E agora vou ficar candidamente a olhar para si durante alguns segundos. E não, não faço intenções de fazer qualquer tipo de esforço para resolver esta situação. Fiquemos assim a olhar-nos mutuamente, costumamos fazer isto no meu grupo de teatro amador e é muito relaxante.
Suponho que sim. Se a carta foi enviada pelos nossos serviços e se coloca a questão dessa maneira, então é provável que alguém aqui saiba responder ao que é isso de ter Portugal no centro de interesses. Posso então falar com alguém que saiba? Pode com certeza, mas eu também não sei quem é que aqui lhe pode responder a isso. Mas então qual é o procedimento quando alguém surge à sua frente como uma questão que nunca lhe tinham colocado previamente? Geralmente, respondo com um não seco, imediato e confiante ou com um isso é impossível e costuma ser suficiente para a pessoa ir-se embora.
Mas o André insiste em não aceitar o não como resposta, fá-lo educadamente sem se exaltar e isso é muito constrangedor para o normal funcionamento deste local de atendimento ao público. Não está a dar-me alternativa e vou ter de ligar lá para baixo. Aqui a pirâmide hierárquica funciona ao contrário. Estou aqui fala do pântano humano posso falar com o governante do mundo inferior? Estou, chefe? Olhe, aqui o André não pára de me esfregar na cara uma carta que nós lhe enviámos a dizer que ele tem de provar que o centro de interesses dele é Portugal. O senhor sabe do que se trata? Quer falar directamente com o rapaz? Mas mando-o descer aí aos infernos? Aí quer que ponha em alta voz? Ok. André? Daqui fala o Hades. Ouve lá, isso foi uma brincadeira que o Elvis fez. O Elvis? Sim. O Elvis não está vivo. Está morto e trabalha aqui na segurança social. O trabalho dele é redigir as cartas de resposta às pessoas e ele gosta de colocar mensagens subliminares das músicas dele nas cartas que enviamos. A do centro de interesses, por exemplo é ter Portugal no pensamento …always on my mind, A quem pede o Subsídio de reinserção social ele faz trocadilhos com a Barefoot ballad.
Para quem perde um subsidio é a Easy come, easy go. E o subsídio de mãe solteira já se sabe é a Fountain of love. É uma sorte ter alguém com tanto talento a trabalhar aqui. A sério? Essa é a sua resposta? Então há pouco reclamava com o não sei do meu subordinado, agora queixa-se da minha sinceridade. A certas pessoas não há como agradar. Livra.
Está a dizer que a segurança social não tem uma resposta oficial que elucide o que devo fazer, o que posso usar como prova, que documentação devo apresentar para uma questão que é a própria segurança social a colocar. Nada. É o que a segurança social responde oficialmente. Como costuma dizer o Elvis, Let yourself go. Faça o que achar melhor.
E eu fiz.
Entreguei um dossier. 50 páginas. Uma colecção de mementos da minha estada em Londres. os cartões de embarque. as cartas de recomendação, provas das tentativas de arranjar trabalho em Lisboa ao longo do tempo que estive fora, dos trabalhos que fiz directamente relacionados com o país. Sentei-me de novo na cadeira da escola e preenchi um teste sem cabeçalho ou perguntas, uma folha em branco. Diligentemente ao calhas à espera de saber se a minha vida foi, durante 8 anos que estive a adaptar-me a outra cultura, suficientemente interessada no meu país de origem.
E agora? Agora esperas. Mas houve tanta coisa que não lhes contei. Uma vez em Lagos comi uma salada de pimentos maravilhosa e pensei adoro o meu país, juro que pensei. E uma vez naquela praia pequenina em frente à ilha do pessegueiro, acabei de ler O Conde de Monte Cristo, já estava lusco-fusco e corri para água impressionando os estrangeiros que achavam a água fria demais, mas eles não sabiam que ao pôr do sol a temperatura da água fica mais próxima da temperatura do ar e fica mais fácil mergulhar, mas eu sabia. Sabia, porque sou português. Sou um bom português que foi muito à praia e aprendeu o que o país lhe ensinou. Eu sei reconhecer a brisa quente. Aquela que nos toca debaixo dos olhos e anuncia o Verão. Ouviram? Eu sei os reis e os bastardos, os rios e os afluentes. Todos eles correm também em mim. Eu tomei atenção. Nas aulas e nas férias. Sou um português completo. Vocês têm que entender isso. Eu preciso desse dinheiro. Eu estou desempregado.
André chega de melodramas. Já fizeste o que tinhas a fazer, agora vai à procura de trabalho. E eu vou.
Olá André, tanto eu como o responsável de departamento que falou contigo achamos que és a pessoa indicada para esta posição. A tua experiência condiz com a exigência da posição. Dependendo de nós o trabalho é teu. Infelizmente o nosso director financeiro diz que a nossa política de contratação só passa pelo regime de estágio profissional pelo qual neste momento não estás abrigado.
Olá André, se tiveres de gritar com alguém, gritas?
Estou André? Falaram-me de ti, tens um currículo interessante, mas se vieres a trabalhar para mim será só através de apoios externos. Não queres dar cá um saltinho para falarmos? Não tenho uma proposta concreta de trabalho para ti mas a coisa bem feita tu falas-me dos contactos que tens e eu depois uso os teus conhecimentos para beneficio da minha empresa, entendes? Parece uma entrevista mas não é, diz esta chefe rindo sonsa do nariz aos ombros.
Olá André, se não fizeres bem o teu trabalho e depois tiveres de obrigar um tipo a ficar a trabalhar até mais tarde devido à tua própria incapacidade. Consegues? Tens pulso para isso?
Olá André, és a pessoa certa para ajudar a reestruturar a minha empresa. Preciso que esta malta ganhe método, processos e fluxos de trabalho. Não. Essa parte não muda porque fui eu que organizei assim. Essa também não. Aliás não muda nada. Estás despedido.
Não, nem olhei para o teu currículo. Só te estou a entrevistar porque és amigo de um amigo meu. E isto é um favor que lhe estou a fazer.
Eu gosto de chamar os meus empregados para reuniões sem pré-aviso e sem tema, ficam nervosos entendes? Fá-los perceber quem é que manda aqui.
Sinto uma leve tontura quântica. Tento agitar os átomos deslocados no meu corpo por esta viagem a um fétido passado laboral em mais uma entrevista de trabalho em que não consegui deixar de mostrar o quão inadaptado estou a uma realidade portuguesa que teima em desafiar o meu pedantismo. Vou a pé para casa embalado pelos últimos suspiros de Verão. Em Londres tudo está a uma hora de distância. Aqui é só esticar a mão e abrir a caixa de correio. Deferido. As outras quatro cartas diziam indeferido, esta diz deferido. O que é que isto quer dizer? O cérebro continua incrédulo ao que o corpo já sabe. As pernas tremem. Galos de Barcelos bicam-me as glândulas lacrimais. Que estupidez, pareço um personagem de novela manhosa. Não consigo controlar a emoção. Este cheque significa mais que um alívio financeiro temporário, é a recuperação de um sentido de pertença que nunca deveria ter deixado a nenhuma instituição o poder de questionar. Mas deixei.
À parte o processo kafkiano banal e recorrente pelo qual qualquer português já passou seguramente, o resto foi acontecendo somente na minha cabeça. Fui eu que coloquei nas mãos de outros o poder de decidir se posso estar aqui. Se tenho o direito de voltar. Se posso estar em pé de igualdade com os outros portugueses. Queria estar em Lisboa, mas apenas se fosse aceite pela comunidade. Se dissessem, és um de nós, enquanto passo na rua. Sem aplicar a mim próprio aquilo que de mais básico aprendi mal sai do país. Ninguém tem o direito de me excluir por eu ter um passado diferente. Por ser diferente. Emigrar não é um crime. Desemigrar também não. Faz parte do batimento cardíaco da terra este fluxo humano. No entanto fui eu o primeiro a marginalizar-me, a distinguir-me dos demais com laivos de superioridade por ter visto um mundo de trabalho mais evoluído em Inglaterra, provavelmente a compensar a inferioridade que senti ao colocarem a minha portugalidade em causa.
Fui culpado de xenofobia auto-infligida. Ninguém me disse fora daqui. Ninguém me olhou de lado. Ninguém me confiscou os bens na fronteira. Ninguém me colocou num Centro de controlo com uma bracelete colorida, ninguém instalou um muro de arame farpado para eu não passar. Mas podia ter acontecido. Bastava que o meu ponto de partida fosse diferente. Bastava que o meu nome fosse Bilal, ou Ahmed, Amira ou Fathma, estivesse num bote de borracha a boiar no mediterrâneo com os documentos de identificação num saco de plástico por dentro das minhas cuecas. Bastava que fosse menos humano aos olhos de alguém com poder a mais e deixava de poder continuar a viver para contar.