José de Guimarães. Uma antologia em jeito de exorcismo

José de Guimarães. Uma antologia em jeito de exorcismo


Arranca amanhã na Galeria Millenium  “Esconjurações”, o regresso de José de Guimarães às mostras em Lisboa, quase oito anos depois da última


Uma porta singela. Entre portões mais majestosos e hotéis acabados de restaurar ninguém dá por aquele número 11, ali no sopé do castelo. Na campainha um minúsculo JG denuncia o proprietário daquele espaço. Seguem-se três salas interligadas onde não vemos peças de José de Guimarães, apenas artefactos africanos, parte da sua infindável coleção, e montra de uma ligação profundamente íntima com aquele continente. Indagamos, ainda que em silêncio, como será possível trabalhar ali. Que ateliê é este? Onde estão os cavaletes, os pincéis, as tintas, as mesas de trabalho?

“Descemos?”, pergunta-nos. Sim, claro. Escada de caracol em ferro, daquelas que nos fazem pensar que à mínima distração vamos parar ao hospital com uma perna partida. Obstáculo ultrapassado e finalmente descobrimos um espaço amplo, uns 500 m2, com janelas rasgadas a deixar a luz cegar. Peças acabadas, peças que nem chegaram a esse estatuto. Enfeites em plástico que mais parecem sugerir uma visita à Feira Popular. E, lá está, mais peças africanas. “É a minha fábrica”, diz-nos José de Guimarães. O operário desta fábrica aparece de preto dos pés à cabeça, como que para passar invisível por entre as cores fortes que sempre marcaram o seu trabalho. “Mas agora a minha fábrica está muito limpinha, normalmente não está assim”, esclarece.

Está “limpinha” porque os instrumentos necessários ao processo criativo estão momentaneamente arrumados, e uma grande parte das peças que aqui normalmente habitam já estão no espaço da Galeria Millenium (rua Augusta, 96), onde arranca amanhã, e fica patente até 20 de abril, “Esconjurações”. A mostra, dividida por três pisos, reúne obras do artista pertencentes à coleção Millennium bcp, entre as quais um alargado conjunto de tapeçarias de Portalegre de grandes dimensões, pertencentes à série Camoniana, e que, pela primeira vez, poderão ser vistas pelo público.

Em simultâneo com esta exposição, o artista que levou o nome emprestado à cidade onde nasceu, em 1939, lança dois livros, um em jeito de catálogo da exposição e com o mesmo nome; o outro com o título “P (de Pop, Pintura e Poster)”, criado sob a chancela da Documenta, é um ensaio inédito sobre obras pouco conhecidas ou totalmente desconhecidas do artista, realizadas entre 1963 e 1976, e que ilustram um dos epítetos de José de Guimarães: o artista pop.

Desde 2008, ano em que inaugurou a exposição “Brasil”, na Galeria Quadrado Azul, que José de Guimarães não fazia uma exposição em Lisboa, uma cidade que continua a ser sua, apesar de se dividir também por Paris, onde tem casa e um outro ateliê. “Mas não tirei um período sabático, durante estes quase oito anos fiz muita coisa”. Só não calhou expor em Lisboa. “Acho que, se possível temos de mostrar o nosso trabalho pelo mundo todo. E este período até foi muito importante porque foi um período em que pude investigar novas coisas, nomeadamente dois temas que se revelaram importantes: os Negreiros e Guaranis e, mais recentemente, o Ritual da Serpente”.

Se a temática dos Negreiros e Guaranis surgiu para José de Guimarães durante uma viagem ao Brasil; o Ritual da Serpente teve a ver com a criação do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em 2012. “Li muito sobre o filósofo Aby Warburg, para quem a cultura é um puzzle, e que acreditava num espírito de mélange entre as épocas. Uma obra pré-histórica pode estar ao lado de uma obra contemporânea. Foi depois destes estudos que nasceu a temática do Ritual da Serpente, que é um ritual dos índios Hopi, do Arizona, que este Aby Warburg conheceu e sobre o qual escreveu. São todos estes fenómenos antropológicos que dominaram os últimos anos da minha vida e que me têm levado a fazer coisas insólitas”.

Estes dois períodos estão também representados nesta exposição, nos outros dois pisos da Galeria Millenium. “Há lá coisas muito insólitas destas fases de que falei”, atira. A coleção de obras da autoria de José de Guimarães que o banco possui serviu então de ponto de partida para estas “Esconjurações”. “Mas depois juntei um conjunto de outras obras, umas mais antigas e outras mais recentes, que não fazem parte da coleção Millenium. Curiosamente, quase todas as obras que não pertencem à coleção do banco e que constam da exposição são objetos: relicários e caixas, dominadas por luzes neon e LEDs que lhes conferem um lado feérico. No terceiro e último piso há uma grande vitrina com relicários Kota e Fang, do Gabão, que são figuras protectoras de relíquias e que normalmente são colocadas em cima das caixas ou cestos de vime onde estão as relíquias”.

De forma transversal, as peças que José de Guimarães trouxe para esta exposição – que não é uma retrospetiva mas uma antologia, de 1973 até aos dias de hoje – “têm todas muito a ver com o culto funerário que é dominante nesta exposição. E esta mostra é também uma homenagem ao Aby Warburg, que muitos consideraram demente”. Incompreensão, de resto, não é palavra estranha para José de Guimarães. Mas, aos 76 anos, também já não lhe tira o sono. “Estas coisas que eu produzo não são muito cómodas visualmente. Nem para ter em casa. Normalmente não combinam com o sofá da sala. As obras que produzo são obras sem finalidade. Valem pela obra em si.”